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quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Aspectos naturais e culturais de Barra do Furado (final)

Por Arthur Soffiati


Nos anos de 1820, ao mencionar a foz do rio Furado no mar, monsenhor Pizarro discorda de José Carneiro da Silva sobre sua navegabilidade: “Castanheta ou Iguaçu, desenvolvido na lagoa Feia, depois de fertilizar diversas campinas, por onde corre, conflui perto do Furado, e aí faz pequena barra no mar, incapaz de ingresso a qualquer embarcação. Onça ou Canudo teve origem de uma vala que fez o capitão José de Barcelos Machado para encaminhar as águas da lagoa Feia ao rio Furado, e corre por campinas descobertas de matos, como o Iguaçu [...] Este rio continua a sua carreira, ao norte, pela costa, mas com o nome de Capivaras, passando pela Ponta de S. Tomé, ao chegar ao Canzoura ou Canzonza, com quem conflui até o mar, onde ambos se despejam, quando a força de braços dos escravos das quatro fazendas principais, e de outras maiores, lhes abre a barra em tempo de inundações.” (PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945).


Daí em diante, Barra do Furado só figurará num trabalho de vulto em 1837, pelas mãos do major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde. Ele era engenheiro e dirigiu a 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro, de grande extensão. Seu registro não traz novidade em relação ao que já foi relatado, mas convém ouvi-lo, dada a sua concisão e precisão: “Tem [a lagoa Feia], nos tempos de águas médias, 150 milhas quadradas de superfície, que sobem a 200 pelas aluviões. Não tem essa lagoa saída constante para o oceano, mas sim alguns rios por onde se esgota, e que reunindo-se ao sul do cabo de S. Tomé, rompem naturalmente nos tempos de grandes cheias a barra chamada do Furado; e são os rios: o da Onça, o Norte do Colégio, o da Castanheta, o do Barro Vermelho e o do Iguaçu. Como o combro de areias próximo do mar e os ventos reinantes muitas vezes conspiram para obstar a saída das águas, acontece que, rodeando estas então pelo interior do cômoro, vão formar ao norte do citado cabo a lagoa do Iguaçu, que abre para o oeste a barra denominada do Canzonga e deixa descoberto rios e extensos pastos.” (BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837). 


Só a partir de meados do século XIX, os mapas começam a assinalar com um ponto convencional a existência de um povoado em Barra do Furado, como exemplificam os mapas a seguir. Ponta Grossa dos Fidalgos e Santo Amaro também aparecem, como se já existissem (Wied-Neuwied informa sobre a igreja de Santo Amaro e de várias lojas comerciais no caminho entre a futura praia do Farol de São Thomé e Campos, quando da sua passagem pelo local em 1815). Quando uma localidade é registrada em mapa, pode-se afiançar que sua existência data de tempos anteriores. A convenção usada para Barra do Furado, no segundo mapa, indica a presença de um engenho de açúcar, pressupondo um povoado em torno. Devia ser um pequeno engenho, anterior à renovação da indústria açucareira que eclodirá em seguida. Esse engenho é indício de documentação que se supõe existente nos livros da Câmara Municipal de Campos. Daí a necessidade de pesquisa documental mais fina, com fontes primárias e seriais.


Um registro importante foi feito por Milliet de Saint-Adolphe no verbete “Furado”: “Canal do distrito de Campos, que faz que a lagoa Feia se comunique com o mar, qualificado pelos naturais com o nome de rio. Foi aberto no princípio do século XVIIIº, por José de Barcellos Machado, ao sul duma das partes quase separada da lagoa por muitas léguas até o mar. Recebe este canal outros muitos que comunicam com vários lagos do distrito, e vai verter o supérfluo de suas águas no Oceano, ao sudoeste do cabo de São Tomé. Cursam por todo ele as canoas, bem como pelos outros que nele fenecem, e pela lagoa, donde podem subir pelo Ururaí e pelo Macabu até o pé da cordilheira dos Aimorés. Dá-se também o nome de Furado à península, que entra pela lagoa Feia, bem como à igreja que se acha no meio dela (SAINT-ADOLPHE. J. C. R. Milliet de. “Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil”. Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863).


O autor francês, que viveu vários anos no Brasil, mostra as ligações da vala do Furado com quase todo o sistema que começa no rio Imbé e termina no rio Iguaçu. Não menciona ainda qualquer povoado ao lado da vala, mas refere-se a uma igreja no grande cabo de Capivari, que ele considera península. Também se equivocou com o século em que foi aberta a valado Furado. Na verdade, final do século XVII e não no século XVIII.

Barrado Furado em Map of the Province of Rio de Janeiro segundo informações de naturalistas compiladas por H. Mahlmann - Berlim - 1848

Barra do Furado em Carta chorographica da Província do Rio de Janeiro - Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob Niemeyer - 1858-61


A partir de 1870, houve a modernização da tecnologia de fabricação de açúcar em todas as regiões açucareiras do mundo. Inglaterra e França passaram a produzir usinas modernas movidas a vapor que foram vendidas para as áreas açucareiras. O norte/noroeste fluminense entrou nessa onda de modernização. As usinas eram montadas do pé, como se dizia, por engenheiros e operários ingleses e franceses. Vale dizer, não se tratava de introduzir modernizações nos antigos engenhos, mas erguê-los da base. A produtividade dessas modernas unidades de fabricação exigiu aumento da produtividade da cana no setor rural. No norte fluminense, muitas terras produtivas estavam embaixo d’água, sob brejos e lagoas. A barra do Furado era insuficiente para lançar água doce no mar e disponibilizar terra. Tornava-se imperioso construir um sistema de canais que drenasse as áreas úmidas e que regularizasse o ciclo hídrico. 


O primeiro passo nesse sentido foi substituir a vala do Furado por um canal linear, largo e profundo que permitisse o rápido escoamento da lagoa Feia em tempos de cheia. Quem o concebeu e o executou foi o engenheiro Marcelino Ramos da Silva, em 1897. Ele foi batizado de canal de Jagoroaba ou Ubatuba, aberto inteiramente numa área de restinga. O engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito criticou o colega e sua obra, demonstrando que ela não era exequível e funcional, e defendeu a otimização do sistema antigo de drenagem, com a Barra do Furado no centro. Marcelino reconheceu o seu erro. A questão da drenagem, contudo, permanecia (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Saneamento de Campos, Estado do Rio de Janeiro”. Campos: Typographia de Silva Carneiro & C., 1903). 


Em 1925, o engenheiro José Antônio Martins Romeu, observando atentamente as marés, fixou marcos de referência mais precisos que os definidos por Saturnino de Brito no início do século XX. Tanto assim que este passou a adotar a Referência de Nível (RN) daquele (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Defesa contra Inundações”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944). Por ela, constata-se que os pontos mais baixos medidos na região situam-se no lado sul da barra do Açu (3,025 m) e na barra do Furado (3,020 m). Cabe então perguntar por que o delta da lagoa Feia dirigia-se para o Açu, 0,005 m. mais alto que o Furado. A resposta é que a proteger o Furado existe um cômoro alto e compacto que represava as águas da lagoa Feia, por maior que fosse o seu ímpeto nas cheias, desviando-as para o Açu, onde este cômoro se aplainava e não lhes oferecia maior resistência. Para a natureza, o caminho mais curto entre dois pontos não é necessariamente uma reta, como nos ensina a geometria euclidiana. A geometria do caos deleita-se com as formas curvas, os meandros, as sinuosidades. Foi esta a percepção de Manoel Martins do Couto Reis, conquanto sua formação relativamente cartesiana. Não era diferente a informação transmitida por Aires de Casal: a lagoa Feia deflui por uma rede de canais que, nos seus leitos derivantes, acabam por formar inúmeras ilhas e esbarram num extenso e alto cômoro de areia grossa e firme. Por fim, acabam encontrando as passagens que os conduzem ao Furado e ao rio Iguaçu ou Castanheta, sendo este o principal distributário do delta no mar. Em sistema tão complexo, não é de se estranhar que surjam sinonímias e confusões. A descrição de José Carneiro da Silva, emitida dois anos depois da de Casal, no empenho de compreender o quadro, acaba por simplificá-lo. 


Saturnino de Brito concebeu um canal retilíneo ligando a lagoa Feia ao mar dividido em dez canais menores no seu interior e um sistema de bombeamento junto ao mar para remover a areia acumulada pela energia oceânica. Idealizou mais três saídas para o mar a fim de auxiliar o canal central na sua função de drenagem. As demais saídas seriam localizadas na lagoa de Gruçaí, no Açu e no Lagamar e nem todas seriam permanentes (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Defesa contra Inundações”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944). 

Projeto de Saturnino de Brito para drenagem de água continental para o mar


O grande projeto de drenagem concebido por Saturnino de Brito não foi implementado mas serviu de base para o sistema proposto, em 1934, por Hildebrando de Araujo Góes, à frente da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, criada pelo governo federal em 1933 (GÓES, Hildebrando de Araújo. “Saneamento da Baixada Fluminense”. Rio de Janeiro: Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, 1934). No entanto, ele só será executado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, órgão sucessor da Comissão com abrangência nacional, entre 1942 e 1949. De todos os canais primários, secundários e terciários abertos pelo DNOS, este, que recebeu o nome de canal da Flecha, é o único com foz no mar (Departamento Nacional de Obras e Saneamento. “Exaguamento e drenagem para recuperação de terras e defesa contra inundações em regiões e cidades brasileiras”. Rio de Janeiro: DNOS, 1949).


Assim, o antigo rio Furado foi englobado e substituído pelo canal da Flecha, não sem os problemas de antes: a energia do mar e o fechamento natural por areia. Cresceu uma localidade na foz do novo rio. O DNOS procurou regular sua vazão com uma bateria de 14 comportas nas proximidades da foz. As obras executadas pelo DNOS no sistema da lagoa Feia, contando do baixo rio Ururaí até o mar, em Barra do Furado, provocaram conflitos com os pescadores e não atendeu a todos os proprietários rurais, além de ter acarretado problemas ambientais (SOFFIATI, Arthur. Revisitando os movimentos de pescadores da região norte do estado do Rio de Janeiro, In: COLAÇO, José (org.) “Pesca artesanal no norte fluminense”. Rio de Janeiro: Autografia, 2019).


Com a finalidade de impedir que o mar vedasse com areia a barra do canal da Flecha, o DNOS concebeu uma obra que estenderia seu leito mar adentro por meio de dois guias-corrente (espigões) de pedra. A obra não levou em consideração a alta energia oceânica na região e o grande volume de areia transportada. Como resultado, o espigão de pedra da margem direita reteve areia e engordou a praia. Por outro lado, o mar erodiu a praia na margem esquerda. Várias obras foram concebidas para esse complexo terminal de Barra do Furado, mas apenas duas tomaram vulto. A primeira foi o projeto de um terminal pesqueiro, a ser executado pelo DNOS em parceria com a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) nos anos de 1980. Ele começou a ser executado mas pouco avançou. Dele restou apenas um prédio hoje abandonado. O segundo consistiu num terminal portuário na segunda década do século XXI. Também fracassou e nada foi realizado. Barra do Furado continua com seus problemas. As comportas geram conflitos pela água. Ora agradam e desagradam proprietários rurais. Ora agradam e desagradam o município de Quissamã, que depende da água da lagoa Feia para abastecimento público. Ora agradam e desagradam pescadores, pois as comportas fechadas impedem a circulação de peixes. 


Além do mais, o transporte de areia consegue vedar a foz do canal da Flecha e torná-la perigosa à navegação de barcos pesqueiros que demandam um pequeno terminal portuário no interior do sistema.


A vila de Barra do Furado cresceu desde sua constituição no século XIX. Ambientou até um romance, embora parcialmente e de forma superficial. Trata-se de “Mercedes”, de Amelia Gomes de Azevedo (Rio de Janeiro: Oficina de Obras do Jornal do Brasil, 1896) Cresceu com a pesca, mas está limitada. Como Ponta Grossa dos Fidalgos, Quixaba, Açu e outros povoados mais, nasceu como uma das muitas “cidades de palha” que se multiplicaram pela planície dos Goytacazes  e que se modernizaram a espera de um grande empreendimento salvador sempre ilusório e nunca implantado. 

Mangue de Barra do Furado


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