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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

O ambiente nativo do norte-noroeste fluminense no século XVI

Por Arthur Soffiati

Ecorregião de São Thomé


Antes e depois da chegada dos europeus ao Brasil a paisagem natural entre os rios Itapemirim, ao norte, e Macaé, ao sul, constitui-se de formações geológicas distintas, mas associadas. Ao fundo dela, distante da orla marítima, as montanhas altas e baixas, antigas e novas, com idade anterior a 600 milhões de anos, formam uma espécie de anfiteatro que encerrava um bloco da Formação Barreiras entre os rios Macaé e Itapemirim. Acreditava-se que esse bloco formava a linha costeira. Nas outras partes da Formação Barreiras, também conhecida como Série Barreiras ou popularmente de tabuleiros, o mar depositou estreitas faixas de areia que formaram praias. Com o embate do mar sobre os tabuleiros, constituíram-se falésias, denominadas de “barreiras” na cartografia dos dois primeiros séculos.

Supunha-se que os rios Paraíba do Sul, Macabu, Guaxindiba, Itabapoana e Itapemirim, bem como uma profusão de córregos cortassem esses terrenos de tabuleiro, com idade estimada de cerca de 60 milhões de anos. Presume-se que a Formação Barreiras tenha origem continental e oceânica. Sobre elas, profundas modificações geológicas se processaram a partir de 10 mil anos antes do presente, na transição do Pleistoceno para o Holoceno.

A fisionomia regional, nos últimos 5.100 anos antes do presente, tornou-se mais diversificada. Grande parte do bloco de tabuleiros foi substituída por uma imensa planície constituída por terras baixas aluviais e restingas, encerrando muita água. Em síntese, com sedimentos transportados da zona serrana, dos tabuleiros e do mar, o rio Paraíba do Sul formou um complexo delta.

Povos indígenas do grupo linguístico macro-jê provenientes do território atualmente correspondente a Minas Gerais foram ocupando progressivamente o grande delta e se adaptando a ele por meio de uma economia de subsistência. A partir de 1622/32, quando começou uma colonização europeia contínua da região, a unidade ecológica da mesma passou a ser caracterizada também pelas atividades econômicas, como a criação de gado bovino, o cultivo da cana-de-açúcar, do algodão, da mandioca, do abacaxi e de cultivos menores.

Assim, pelas dimensões geológicas, hídricas, vegetacionais, antropológicas, sociais e econômicas era possível identificar uma região entre os rios Macaé e Itapemirim, como escreveu José Saturnino da Costa Pereira em 1848:

    Saturnino ultrapassou o limite norte aqui definido. Talvez, por falta de cartografia mais fina, ele tenha chegado até Benevente ou Anchieta, onde a costa já é pedregosa e entremeada de restingas. De qualquer maneira, é de se admirar que ele, como leigo em geologia, tenha percebido que, na região em apreço, a costa se afasta da montanha e não o contrário. Já o geólogo canadense Charles Frederick Harrt, também no século XIX, teve a mesma percepção, mas considerou que a serra é que se afastou da costa. 

Hoje, percebemos que a explicação de José Saturnino é a mais correta. Podemos também delimitar com mais precisão o território ocupado por essa região, como mostra o mapa abaixo.
Ecorregião de São Tomé com as respectivas 
unidades geológicas que a constituem
Geologia

Basta, numa exposição didática, tratar apenas da fase mais recente da formação geológica da grande planície fluviomarinha que integra a região do atual norte-noroeste fluminense.

Existem duas teses clássicas de interpretação: a do engenheiro de minas Alberto Ribeiro Lamego, formulada em 1945, aprimorada em 1955 e consolidada em 1972, e a de quatro geólogos que a vinham descrevendo nos anos de 1980, apresentando-a de forma geral em 1997. A diferença entre ambas está no ponto inicial. Alberto Lamego concebeu o rio Paraíba do Sul avançando sobre um golfo raso e transportando sedimentos das partes altas para as partes baixas. Assim, o rio construiu um longo espigão dentro do mar, formando seu primeiro delta, que Lamego classificou como do tipo Mississipi ou pé de ganso, por ter braços longos como os do delta do Mississipi ou dos dedos longos de um pé de um ganso. Num segundo momento, esse longo espigão se ramificou em dois braços num ponto distante da costa atual e formou um delta do tipo Ródano, por se parecer com o delta desse rio. Enquanto isso, as águas do Paraíba do Sul transportavam sedimentos que formavam a planície fluviomarinha. Finalmente, o Paraíba do Sul consolidou seu ponto de lançamento de água no mar por um delta típico do rio, recebendo, por isso, a classificação de delta Paraíba do Sul, com os braços de Atafona e Gargaú. 
Ponto inicial da formação da planície dos Goytacazes segundo Lamego. A linha pontilhada indica a costa atual. O espaço preenchido entre e linha contínua e a linha pontilhada corresponde aos atuais tabuleiros, planície e restinga
O território da região depois de formada, segundo Lamego

Já pelas pesquisas dos geólogos Martin, Suguio, Dominguez e Flexor, a linha da costa entrava mais no mar há 10 mil anos antes do presente. Em vez do golfão de Lamego, no ponto inicial, existia uma área continental não estudada pelos autores. Com o aquecimento do planeta, o nível do oceano começou a subir e a avançar sobre o continente, num fenômeno tecnicamente denominado de progressão. Concomitante a ele, verificou-se também o fenômeno de retrogradação continental, que é o recuo das terras continentais.

O ponto máximo de progressão/retrogradação ocorreu há 5.100 anos antes do presente. A partir de então, dois processos paralelos constroem e estabilizam uma linha de costa muito próxima da atual. Lembremos, contudo, que as dinâmicas marinha e continental continuam atuando. Daí, processos erosivos em Marataízes, Barra do Itabapoana, Manguinhos, Guaxindiba, Atafona, Açu, Cabo de São Tomé, Barra do Furado de Macaé. Deve-se levar em conta que as intervenções humanas concorrem para tais processos, como a redução de vazão de rios, a construção de espigões de pedra na costa e a abertura de canais no continente.

Num ponto, as duas interpretações chegam à mesma conclusão: o resultado de ambos os processos é a formação de uma grande planície fluviomarinha deltaica pelo rio Paraíba do Sul com incontáveis cursos d'água e lagoas. 
Invasão máxima do continente pelo avanço do mar, em 5.100 anos antes do presente, segundo Martin, Suguio, Dominguez e Flexor. A linha pontilhada assinala a costa atual
O território atual da planície segundo Martin, Suguio, Dominguez e Flexor. A linha pontilhada indica onde chegava o litoral há 10.000

Rios e lagoas

No interior da planície, a corrente do Paraíba do Sul e de suas ramificações assume a direção norte-sul e oeste-leste. Esta orientação talvez se deva à força do jato hídrico em direção ao sul e a força das correntes marinha de oeste para leste. Dois eixos hídricos se distinguem na planície. O primeiro é o do Paraíba do Sul, que se desloca de oeste para leste. O segundo é desenhado pelos rios Imbé e Urubu/lagoa de Cima/rio Ururaí/lagoa Feia/rio Iguaçu. Os dois eixos se aproximam na raiz e, na verdade, fazem parte do grande complexo deltaico do Paraíba do Sul. O rio Iguaçu, hoje não mais existente, corria quase paralelo ao rio Paraíba do Sul. Os dois se ligavam por cursos hídricos, com as águas correndo lentamente do Paraíba do Sul para o Iguaçu, em razão da ligeira declividade do terreno na margem direita do Paraíba do Sul em direção ao Iguaçu. Um desses defluentes ficou conhecido com córrego do Cula ou Grande Canal. Sendo, a bem dizer, uma ramificação do Paraíba do Sul em direção meridional barrado pela restinga de São Tomé, ele deu origem ao grande banhado da Boa Vista. 
Rede hídrica da planície dos Goytacazes segundo Alberto Ribeiro Lamego (1954). Legenda: A- Rio Paraíba do Sul; B- Sistema Imbé-lagoa de Cima-Ururaí-Iguaçu; 1- rio Preto; 2- rio Cacumanga; 3- córrego Grande ou do Cula; 4- rio Cambaíba; 5- rio São Bento; 6- rio Doce ou Água Preta

Ao se formar, a planície capturou a parte serrana do rio Paraíba do Sul, a lagoa de Cima, o rio Macabu e o rio Muriaé. Vários pequenos cursos provenientes dos tabuleiros foram tamponados pela restinga norte da região, transformando-se em lagoas. Em outras palavras, a planície do rio Paraíba do Sul formou-se entre a zona serrana e os tabuleiros sul e centro, interceptando os cursos hídricos e bloqueando córregos.

A lagoa de Cima transbordou e passou a correr pelo rio Ururaí. O rio Preto, oriundo da Serra do Mar, desembocava no Paraíba do Sul quando das cheias. Nas estiagens, seu leito corria só para o rio Ururaí. Este se alargava mais adiante na grande lagoa Feia, que recebia o rio Macabu. Por vários braços, a lagoa Feia formava o rio Iguaçu, que tinha uma foz alternativa para o mar, em tempos de cheia, na lagoa do Lagamar. Os antigos ainda conhecem este escoadouro com o nome de Barra Velha. Depois de receber águas do Paraíba do Sul, com mais intensidade nas enchentes, pelos vertedouros do Cula, do Cambaíba, do São Bento e do Preto, o rio Iguaçu formava o banhado da Boa vista e se lançava no mar. Esses vertedouros formavam uma infinidade de lagoas que, no conjunto, constituíram um pantanal.

Cinco rios de maiores proporções desembocam no mar no âmbito da região: Itapemirim, Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. Entre o primeiro e o terceiro, vários pequenos cursos d'água também defluíam no mar. A maioria deles perdeu a competência para continuar com a barra aberta, sobretudo por ações humanas.

Ecossistemas vegetais nativos

No âmbito da região, a vegetação nativa varia conforme o solo, a altitude, as condições hídricas e climáticas. A classificação empregada aqui para os ecossistemas vegetais nativos da região foi a proposta por Henrique Pimenta Veloso com mais dois autores por nos parecer a mais completa. Encontram-se as seguintes formações vegetais nativas, do ponto mais alto até a linha de costa, ou seja, do ponto mais antigo ao mais recente em termos geológicos: 

1- Campos de altitude ou refúgios vegetacionais: costumam ocorrer acima de 1800 metros, diferenciando-se da vegetação imediatamente abaixo. Substrato, altitude e temperatura influenciam muito a vegetação dos campos de altitude, que, na região de São Tomé, ocorrem na Pedra do Desengano e no Pico do Frade, pontos elevados da Serra do Mar. A altitude e a dificuldade de acesso respondem pelo seu melhor estado de conservação. 
Campo de Altitude da Pedra do Desengano. 
Foto: João de Orleans e Bragança.

2- Floresta ombrófila densa atlântica: trata-se do que se conhece como Mata Atlântica típica. Geralmente, ocorre nas encostas interna e externa da Serra do Mar e na zona de colinas e maciços costeiros, estes especificamente no interior da região. Como a própria classificação indica, esse tipo de floresta cria a aprecia ambientes sombrios e úmidos, apresentando grande biodiversidade. Na região de São Tomé, ela está presente na margem direita do rio Paraíba do Sul, no trecho em que a Serra do Mar é conhecida localmente com o nome de Imbé.
Mata Ombrófila Densa  Atlântica. 
Foto Luiz Cláudio Marigo

3- Floresta estacional semidecidual atlântica: consiste na mesma Mata Atlântica, mas em ambiente que a condiciona à dupla sazonalidade: chuva no verão e estiagem no inverno. Durante a estação seca, ela perde entre 20 e 50% das folhas, recobrando seu verdor na estação chuvosa. Na região estudada, ela ocorre na zona cristalina baixa, à margem esquerda do rio Paraíba do Sul, e nos tabuleiros. 
Remanescente de floresta estacional semidecidual 

4- Campos nativos de planície fluvial: são formações pioneiras denominadas pelos autores que seguimos como vegetação com influência fluvial. Elas vão desde a vegetação que cresce em áreas pantanosas aos terraços alagáveis. No âmbito da região, elas são dominantes na planície fluviomarinha do rio Paraíba do Sul.
Ao centro, vegetação adaptada a área pantanosa. 
Nas margens, vegetação de terraços alagáveis

5-Vegetação de restinga ou formações pioneiras de influência marinha: são aquelas sob forte influência do mar, seja pela salinidade de água ou do vento. O exemplo mais conhecido são as formações vegetais nativas de restinga, a vegetação de dunas geralmente nas restingas e a chamada vegetação de costão rochoso. Na região, encontram-se a vegetação de restinga em todas suas zonações (herbácea, arbustiva e arbórea) e nas dunas. Não existe a vegetação de costão rochoso por originalmente não haver pedras na costa entre a margem esquerda do rio Macaé e a margem direita do rio Itapemirim.
Vegetação herbácea e arbustiva de restinga. 
Foto de dina Lerner (1992)
Vegetação de dunas

6- Vegetação pioneira de influência fluviomarinha: é aquela que se desenvolve em ambiente formado pela mistura de água doce com água salgada, a exemplo dos manguezais e dos campos salinos. Os manguezais são bastante comuns na região com amostras extensas devido ao rio Paraíba do Sul, por exemplo, o maior de todos. Suspeita-se também da existência de campos salinos ou marismas nos arredores da hipersalina lagoa Salgada.
Manguezal do rio Paraíba do Sul
Provável campo salgado no entorno da lagoa Salgada

A fauna nativa também era bastante diversificada, incluindo animais de grande porte, como antas, onças, tamanduás bandeira e veados.

Leituras

ARGENTO, Mauro Sérgio Fernandes. A contribuição dos sistemas cristalino e barreira na formação da Planície Deltaica do Paraíba do Sul. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Estadual Paulista – UNESP, Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Rio Claro/SP, 1987.
HARRT, Charles Frederick. Geologia e Geografia Física do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
LAMEGO, Alberto Ribeiro. Geologia das Quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154. Rio de Janeiro, 1955. 
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 1945. 
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.
MARTIN, Louis; SUGUIU, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M.L. e FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997. 
MARTINELLI, Gustavo. Campos de Altitude. Rio de Janeiro: Index, 1989.
Nacional, 1941 (1ª ed. Boston: 1870)
PEREIRA, José Saturnino da Costa. Apontamentos para a formação de um roteiro das costas do Brasil com algumas reflexões sobre o interior das Províncias do litoral e suas produções. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1848.
VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa; e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da Vegetação Brasileira, Adaptada a um Sistema Universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991.

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