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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A planície goitacá antes e durante a globalização europeia (II)

Por Arthur Soffiati

Entre 1500 e1534

Quando os portugueses aportaram no Brasil (“descoberta” é uma expressão polêmica), nem toda a costa mereceu atenção. Os representantes dos europeus atentaram para Pernambuco, baía de Todos os Santos, Cabo Frio, baía do Rio de Janeiro e São Vicente, na atual São Paulo. 

Em vão, tenho procurado referências à planície fluviomarinha do futuro norte-fluminense. Nos diários de bordo e nos relatórios dos primeiros navegantes europeus pela costa brasileira, não há indicações sobre os primeiros trinta anos da chegada dos portugueses. Se há, são insignificantes. A viagem de 1501 ao Brasil não traz qualquer informação. Os diários de Américo Vespúcio tampouco. O diário de navegação de Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso de Souza, que o acompanhou, é notável na descrição dos pampas. 
Ela se estendeu de 1530 a 1532. Sobre o estirão de costa que virá a ser doado a Pero de Gois, existe apenas um registro sobre os “baixos dos parguetes”, ponto de difícil localização futuramente.
Brasil no Planisfério de Cantino – 1502, o mais antigo mapa do Brasil

Creio que a falta de referências à planície dos Goitacazes, entre 1500 e 1530, deve-se à ausência de portos naturais para as embarcações europeias e às lendas sobre a ferocidade dos índios da região. Os estudiosos desses viajantes, por sua vez, estão mais interessados nos assuntos humanos que na geografia.

Entre 1534 e 1546

Alguma notícia será mesmo fornecida depois da divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias, em 1534, quando a extensão da costa entre a foz do rio Macaé, presumidamente, e a foz do rio Itapemirim, certamente, tornaram-se os limites da Capitania de São Tomé, doada a Pero de Gois. Até que ele escolhesse um local para instalar, a sede da capitania, informa Gabriel Soares de Souza que a primeira escolha correspondia às margens do rio Paraíba do Sul. Como Souza escreveria seu tratado no final do século XVI, pode ter havido engano de sua parte ou Pero de Gois buscou posteriormente um ponto mais seguro nos seus domínios.

Suas cartas a Martim Ferreira, seu sócio em Portugal, e ao rei são confusas para nós. Devem ter sido também no seu tempo. Afinal, tratava-se de um mundo novo, com rios, lagoas e florestas pujantes, além de habitantes hostis. Esse mundo impunha aprendizado aos europeus, acostumados com uma natureza domesticada e amena.

A Capitania de São Thomé, depois de Paraíba do Sul, foi doada a Pero de Gois em 10 de março de 1534, doação confirmada em 28 de janeiro de 1536. Os limites dela se estendiam por treze léguas a contar de Cabo Frio até os misteriosos Baixos do Pargos. Em 14 de agosto de 1539, Pero de Gois entrou em acordo com Vasco Fernandes Coutinho, donatário da Capitania do Espírito Santo, para situar o limite entre os domínios de ambos em local de mais fácil reconhecimento. Assim, o limite ao norte foi fixado no rio Itapemirim. Ao sul, ele ficou vago, pois Pero de Gois não se movimentou por lá. Muito menos pelo interior, que ficou em aberto. Em 12 de março de 1543, D. João III, rei de Portugal, sancionou o acordo entre os donatários.
Capitanias Hereditárias segundo mapa de Luís Teixeira - 1586

Pero de Gois instalou-se na foz do rio Managé (hoje Itabapoana), entre a restinga de Marobá e os tabuleiros. O terreno alto das falésias era coberto de extensas florestas. Dali, ele podia vigiar o que chegava por mar. Consta que, no lado direito da foz do Managé, Pero de Gois ergueu um povoado ao qual deu o nome de Vila da Rainha, em homenagem a Dona Catarina, rainha de Portugal. Num desenho, provavelmente de, José Wasth Rodrigues, imagina-se como seria o núcleo. No século XVIII, Couto Reis informa ter achado restos dela. Pelas cartas de Pero de Gois, ele instalou um engenho na costa e outro na última queda d’água do Managé.
Vila da Rainha

A experiência de implantar um núcleo europeu em sua versão portuguesa na sua capitania durou de 1539 a 1546. Sete anos, portanto. Ataques de índios e de portugueses provenientes do Espírito Santo inviabilizaram a iniciativa. Depois de flechado num olho, Pero de Gois abandonou a capitania, sem devolvê-la oficialmente à Coroa portuguesa. Dela restou apenas o porto junto à ultima queda d’água do rio Itabapoana, que foi aproveitada para a geração de energia elétrica pela Pequena Central Hidrelétrica Pedra do Garrafão. Em recente visita ao local, alguns professores de Campos, eu entre eles, visitaram o local. O acesso é proibido pela Central, embora margem de rio seja pública. Consta que o local está semidestruído. Mais um atentado ao patrimônio cultural. O porto deveria ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pois seria um dos três pontos mais antigos do sudeste brasileiro, apenas suplantado por São Vicente e por Vila Velha. O porto é mais antigo que a cidade do Rio de Janeiro. 
Porto em Limeira, construído por Pero de Gois

Entre 1546 e 1619

Em 1556, o mapa Brasiliaanze Sheepvaard door, de Johan Lerius Gedann vit Uraneryk in't Iaar, nomeia a foz do Paraíba do Sul com o nome de Oterakata. O mapa do cartógrafo holandês registra o local como se fosse uma enseada. Na carta Brasilia Descriptionis Ptolomaicae Augmentuum, de 1597, Cornelius Witflief dá a essa enseada o nome de Baía de S. Salvador. Esses mapas sempre viam o litoral do mar, pois havia o receio de aportar no continente povoados por nativos perigosos.
Brasiliaanze Sheepvaard door, de Johan Lerius Gedann vit Uraneryk in't Iaar, 1556

Era comum os navegantes do século XVI evitarem a planície, mesmo porque era difícil desembarcar nela. O ponto mais acessível era o arquipélago de Sant’Ana, em frente à foz do rio Macaé. Ele ficava afastando do continente e protegido de possíveis ataques indígenas. Além do mais, sua ilha principal contava com água doce para abastecer os navios.

Jean de Léry, em torno de 1558, registra o medo que os europeus nutriam pelos nativos da planície e a utilidade do arquipélago de Sant’Ana: “Depois de costearmos a terra desses uetacá, avistamos outra região próxima chamada de Macaé e habitada por outros selvagens que (...) não podem(?) se comprazer na vizinhança de índios tão brutais e ferozes. Nessas terras vê-se à beira-mar um grande rochedo em forma de torre, tão reluzente ao sol que pensam muitos tratar-se de uma espécie de esmeralda; e com efeito, os franceses e portugueses que por aí velejam o denominam ‘Esmeralda de Macaé’. Dizem que ela é rodeada por uma infinidade de rochedos à flor da água que avançam mar afora cerca de duas léguas e como tampouco a ela se tem acesso por terra, é completamente impraticável. Também existem três pequenas ilhas chamadas ilhas de Macaé junto das quais fundeamos e dormimos uma noite (...) estava nossa aguada corrompida, por isso pela manhã (...), alguns marujos foram procurar água potável nessas ilhas desabitadas e verificaram que todo o terreno se achava coberto de ovos de aves de diversas espécies, aliás diferentes das nossas. E tão mansas, por nunca terem visto gente, que se deixavam pegar com a mão ou matar a pauladas; assim nossos homens puderam encher o escaler, trazendo para o navio grande quantidade delas.”

Para o português Gabriel Soares de Souza, “Esta ilha de Santa Ana fica em vinte e dois graus e um terço, a qual está afastada da terra firme duas léguas para o mar, e tem dois ilhéus junto de si. E quem vem do mar em fora parece-lhe tudo uma coisa. Tem esta ilha da banda da costa um bom surgidouro e abrigada por ser limpo tudo, onde tem de fundo cinco e seis braças: e na terra firme defronte da ilha tem boa aguada, e na mesma ilha há boa água de uma lagoa. Por aqui não há de que guardar senão do que virem sobre a água. E quem vem do mar em fora para saber se está tanto avante como esta ilha, olhe para a terra firme, e verá no meio das serras um pico, que parece frade com capelo sobre as costas, o qual demora a loeste noroeste, e podem os navios entrar por qualquer das bandas da ilha como lhe mais servir o vento e ancorar defronte entre ela e a terra firme.”

Sobre a região no final do século XVI, cabe ainda mencionar o fantasioso relato do corsário inglês Anthony Knivet. Ele afirma ter convivido com puris e travado guerras contra os goitacazes. Sua geografia, contudo, é tão confusa que suas palavras merecem desconto, em que pese a importância dada a ele por estudiosos.

Em 1619, Gil de Gois, filho de Pero de Gois, tenta novamente colonizar a Capitania de São Tomé. Alberto Frederico de Morais Lamego afirma que ele ergueu uma vila na margem direita da foz do rio Itapemirim com o nome de Santa Catarina das Mós. Ela estaria em terreno hoje ocupado pela cidade de Marataízes. Examinei as primeiras tentativas de colonização da Capitania de São Tomé no artigo acadêmico “Em torno da Vila da Rainha”. Faltam muitos elementos para subsidiar a afirmação de Lamego. O certo é que Gil de Gois devolveu oficialmente a capitania à Coroa Portuguesa em 1619.

Entre 1619 e 1632

Voltando a pertencer ao governo monárquico português, a Capitania de São Tomé ficou abandonada. A partir de então, sete fidalgos da baía do Rio de Janeiro e de Cabo Frio, bem como a Ordem dos Jesuítas reivindicaram terras dentro da capitania na forma de sesmarias, ou seja, apenas para fins econômicos.

Leituras complementares 

KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens (Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue).  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

LAMEGO, Alberto Frederico de Morais. Mentiras históricas. Rio de Janeiro: Record, s/d.
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961.
MICELI, Paulo (texto e curadoria) O tesouro dos mapas: a cartografia na formação do Brasil (catálogo). Rio de Janeiro: Instituto Cultural Banco Santos, 2002.

PEREIRA, Moacyr Soares. A navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio. Rio de Janeiro: ASA Artes Gráficas, 1984.

SOFFIATI, Arthur. Em torno da Vila da Rainha. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro nº. 18, ano 18. Rio de Janeiro: IHGRJ, 2011.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

SOUSA, Pero Lopes de. Diário de Navegação. Cadernos de História, volume I. São Paulo: Parma, 1979.

VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo: cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre: L&PM, 1984.


Por Arthur Soffiati / Fotos: Do Autor

2 comentários:

  1. Como é fantástica a nossa história de ocupação da região que hoje se chama Norte Fluminense. Impressionante a falta de conhecimento sobre a mesma. Obrigada Arthur Soffiati

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