Por Arthur Soffiati
Eixo córrego do Cula
O córrego do Cula era um dos braços do antigo delta do rio Paraíba do Sul. Ele partia da margem direita do rio, na altura em que se ergueria Campos, e rumava em direção ao cabo de São Tomé. Era um curso d’água volumoso que contribuiu na construção da planície tanto na parte aluvial quanto na parte de restinga. Há indícios de que esse braço do delta enfrentou a corrente marinha que corre de oeste para leste. A força da vazão do Cula e da corrente estreitaram a restinga entre o Açu e a futura Barra do Furado numa faixa de 28 quilômetros. O Cula teria perdido a luta para o mar. O resultado foi a formação do cabo de São Tomé com os baixios arenosos a sua frente, o banhado da Boa Vista e a estreita foz do rio Iguaçu no mar.
O córrego do Cula teve importância significativa no eixo de colonização europeia com ponto de partida na estreita faixa de areia de 28 quilômetros. O movimento inicial desse eixo foi o requerimento de terras, a título de sesmarias, por sete fidalgos do Rio de Janeiro e de Cabo Frio, entre a foz do rio Macaé e a foz do rio Iguaçu. Eles ficaram conhecidos como Sete Capitães. Partindo de Cabo Frio a pé e a cavalo, eles chegaram à foz do Macaé e tentaram atingir a foz do Iguaçu por mar. Fracassando, eles voltaram a Macaé e atravessaram por terra a restinga de Jurubatiba, atingindo a lagoa Feia e as terras requeridas. Encontraram degredados vivendo entre os índios goitacás. Ficaram maravilhados com a diversidade da fauna que alimentava os indígenas. Examinaram suas terras. Batizaram acidentes geográficos. Fixaram marcos demarcatórios de suas terras. Deixaram algumas cabeças de gado e dois índios cristianizados em Campo Limpo, fora da restinga, e na altura do local em que futuramente seria aberta a vala do Furado, no ponto em que a restinga de Paraíba do Sul se liga à restinga de Jurubatiba.
Os sete fidalgos empreenderam três viagens às suas terras e iniciaram, pela faixa arenosa, o segundo eixo da colonização europeia. Essa colonização começou na restinga, mas dirigiu-se para a parte aluvial da planície seguindo o córrego do Cula, que era também conhecido como córrego Grande. Historiadores e apologetas entendem que a colonização da planície fluviomarinha do norte fluminense começou com os sete fidalgos porque eles deixaram um documento cuja legitimidade foi discutida durante muito tempo. Ele recebeu o nome de Roteiro dos Sete Capitães. Historiadores se debruçaram no seu estudo e concluíram pela sua veracidade.
Poucos fidalgos permaneceram nas terras requeridas. Eles tinham posses em Cabo Frio, na baía do Rio de Janeiro e em Parati. Seus descendentes diretos e indiretos fixaram-se nas terras requeridas. Logo em seguida, Jesuítas, Beneditinos e membros da família Correia de Sá também requereram terras nos domínios dos Sete Capitães. Nos interstícios dos latifúndios, pequenos posseiros se instalaram. O objetivo inicial dos sete fidalgos era a criação de gado, pois não havia mais grandes extensões de terra na baía do Rio de Janeiro. Contudo, a cana-de-açúcar foi introduzida na grande planície, adaptando-se muito bem na parte aluvial dela. Mais tarde, também na parte arenosa.
O caminho que seguia o córrego do Cula desembocou no local em que foi erguido o povoado de Campos dos Goytacazes. Esse caminho se tornou famoso e foi considerado como o verdadeiro eixo da colonização europeia da planície. Na parte aluvial dela, além do plantio de cana e da criação de gado, ergueram-se muitos engenhos. Na segunda metade do século XIX, esses engenhos foram substituídos por usinas. Esse foi o eixo que mais contou com usinas. Da restinga para o interior, mencionem-se Saturnino Braga, Mineiros, Taí, São Sebastião, Limão, São José, Tocaia, Tocos, Santo Antônio.
Nesse eixo, também se instalam os jesuítas e o beneditinos, cujas sedes ainda existem. A estrada de terra foi substituída pela Ferrovia São Sebastião, que ligava Campos a Santo Amaro, quase na restinga. Com o fim da era ferroviarista, uma rodovia asfaltada passou a ligar Campos ao Farol de São Tomé. Com o fim das usinas, o eixo deu lugar à indústria cerâmica, pois a parte aluvial da planície tem argila de qualidade.
Irradiando-se para oeste, esse eixo de colonização resultou na abertura de um canal de escoamento de água doce para o mar. O sul da lagoa Feia era um labirinto de canais que alagavam terras férteis para a agropecuária. A água doce era um fator limitante para a economia. Em 1688, José de Barcelos Machado, herdeiro colateral de um dos sete Capitães, abriu uma vala para escoamento da água doce para o mar na parte em que a restinga é mais delgada. Esse canal recebeu o nome de vala do Furado, tratando-se de uma obra fundamental para a criação de um modo de vida europeu na planície. A partir das terras de Machado, foi fundado o morgado de Capivari e Quissamã.
Havia um caminho que ligava a foz da Vala do Furado a Santo Amaro. Por ele, seguiam os caminhantes que vinham do Rio de Janeiro em direção a Campos e daí ao norte do país. Por ele também seguiam os viajantes que vinham do norte. Esse é um dos motivos de haver poucas informações do trecho de restinga que se estende da vala do Furado à margem direita do rio Paraíba do Sul na área da restinga. No século XIX, foi erguido, na faixa estreita da restinga, um grande farol para alertar os barcos dos perigos representados pelos parcéis de São Tomé.
Com o tempo, os eixos de São João da Barra e do Córrego do Cula acabaram por se confundir. Entende-se, ainda hoje, que ambos foram abertos por sesmeiros e que convergiram para a área em que se ergue Campos dos Goytacazes. De fato, os dois têm sido tratados pela historiografia tradicional como braços do mesmo processo de colonização. Mas, voltando às origens, enfatiza-se aqui que Atafona e São João da Barra ergueram-se a partir de colonos pobres que viviam da pesca, enquanto que latifundiários começaram a colonização a partir do sul da lagoa Feia. Alberto Ribeiro Lamego busca opor a riqueza da planície aluvial, colonizada por homens ricos, à pobreza da planície arenosa, colonizada originalmente por pescadores. Daí, sua oposição entre muxuangos e mocorongos.
Muxuango e mocorongo
A propósito do eixo Córrego do Cula, é necessário registrar algumas palavras sobre os povoadores da restinga e da serra; sobre as diferenças culturais entre o habitante da restinga e os das faldas da montanha. O muxuango vive na restinga. Ele seria o equivalente ao caiçara em outras partes do Brasil. A diferença é que o muxuango tem pele clara, supondo-se que descenda de náufragos nórdicos. Ainda hoje, há quem assuma a condição de muxuango ou mixuango, ou seja, de praiano. Vive da pesca e do comércio de lenha e frutos extraídos da restinga. Para Alberto Ribeiro Lamego, “O trabalho do muxuango é quase idêntico ao do índio: a pesca e a caça nas lagoas, a cultura da ‘mandiba’ e das abóboras, a indústria da farinha, a cerâmica e a cestaria primitivas, a criação em pequena escala”.
Em sua visão determinista, Lamego entende o muxuango como produto da restinga, preguiçoso e “derrotado”, só podendo ser salvo por alguma força externa, como os governos estadual e federal, por exemplo.
Já o mocorongo descende de negros escravizados. Ele fugiu para a floresta da zona serrana do Imbé. Hoje, seria o quilombola. O muxuango é um retardatário envergonhado. O mocorongo, um chegadiço espantado perante a civilização. Um encalhou nos areais da costa, descobiçados por estéreis. O outro é um intruso na terra virgem da floresta. Mas não imigrou. Fugiu. Não foi conquistar. Escondeu-se.
Anos mais tarde, a folclorista An’Augusta Rodrigues voltará a efetuar uma análise comparativa entre muxuango e mocorongo.



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