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Santo Amaro e o decolonial

Por Arthur Soffiati

Olhando para os últimos 500 anos com visão crítica, diremos que o ocidente invadiu o mundo impondo-lhe sua dominação e sua cultura, explorando os povos de outros continentes. A partir do século XVIII, as colônias europeias começaram a se emancipar do ocidente pelo menos de maneira política formal. O mundo encheu-se de Estados nacionais à moda europeia. Esse movimento não resultou de povos nativos e escravizados contra o dominador. Salvo talvez no Haiti, onde o processo de emancipação foi conduzido por negros escravizados. Mas a forma política adotada foi europeia: Estados nacionais em que se buscava a unidade cultural interna, com capital e língua oficial, embora esse processo não tenha obtido sucesso absoluto. O resultado foi a multiplicação de Estados europeus pelo mundo. Esse processo é conhecido como descolonização.

Como restaram muitas marcas europeias nesses novos Estados, consolida-se agora a luta chamada “decolonial”, que visa expulsar o máximo das marcas europeias fora da Europa. Trava-se agora uma luta contra o machismo, o racismo, a violência contra as populações mais pobres e não-brancas, a valorização da cultura popular autóctone etc. Nem sempre é possível buscar a pureza da cultura popular, pois, durante 500 anos, a população pobre construiu inconscientemente culturas que incorporam elementos culturais nativos, africanos (que também vieram de fora) e europeus. Não é possível banir também a cultura considerada erudita, que está presente na literatura, nas artes plásticas, na música, no teatro e no cinema. O que se pode fazer é deixar claras as origens e os limites. A academia, por exemplo, recorre a autores europeus para promover a luta decolonial. Em síntese, o decolonial completo parece utopia.

No dia 15 de janeiro de 2025, voltei a peregrinar ao distrito (prefiro vila) de Santo Amaro não para louvar o santo, mas para novamente testemunhar o fervor dos devotos dele, introduzido no Brasil pela ordem religiosa de São Bento. Santo Amaro foi um dos primeiros membros da ordem beneditina e ganhou devotos e igrejas no mundo cristão católico. Sua presença é marcante em Portugal. Na cidade de Évora, visitando um museu de arte sacra, encontrei uma imagem do santo, mas não pude fotografá-la por ser proibido. 

Ícone de Santo Amaro

Ele conta com devotos e templos em Lisboa e nos Açores. Certamente que em outros lugares também. Não fiz um mapeamento exaustivo em todo o mundo católico.

Capela de Santo Amaro em Alcântara, Portugal

Igreja de Santo Amaro, São Roque do Pico – ilha do Pico Açores (Portugal)

Em São Paulo, encontramos a catedral de Santo Amaro, cujas origens remontam ao ano de 1686.

Catedral de Santo Amaro, São Paulo

Em Santo Amaro do Sul, Rio Grande do Sul, a quarta igreja mais antiga do atual estado tem o santo beneditino como padroeiro. Ela data de 1787. Na Bahia, existe, em Lauro de Freitas, a igreja de Santo Amaro de Ipitanga, sede de paróquia.

Igreja de Santo Amaro em Santo Amaro do Sul, Rio Grande do Sul

Igreja de Santo Amaro de Ipitanga, Lauro de Freitas, Bahia

Se levado adiante, esse mapeamento se tornaria monótono. Mais que São Bento, que tem um mosteiro beneditino em Mussurepe e conta com a Igreja Nossa Senhora das Rosas, no Farol de São Tomé, ambos no município de Campos, Santo Amaro é talvez o mais popular santo na Baixada dos Goytacazes, nos dois eixos da colonização portuguesa (Farol – Campos e São João da Barra – Campos). Igrejas em louvor a ele se espalham na planície aluvial e na restinga. Nesta última, encontramos a igreja de Santo Amaro em Grussaí, São João da Barra.

Igreja de Santo Amaro em Grussaí, São João da Barra

Na antiga estrada Farol – Campos, que acompanhou o extinto canal do Cula, o primeiro caminho era de terra e foi trilhado por aqueles que vinham do Rio de Janeiro ou para ele se dirigiam; depois, foi construída a ferrovia Santo Amaro, acompanhando a velha estrada; finalmente, o caminho de ferro foi substituído pela estrada asfaltada que hoje existe. No eixo desse caminho, encontram-se pelo menos quatro igrejas em louvor a Santo Amaro. A primeira, para quem sai de Campos, localiza-se em Goitacazes, antiga São Gonçalo, e está abandonada. Eu a visitei na década de 1970 e dela tirei fotos. Consta que foi demolida ou está em ruínas. Esse prédio, notável por ser hexagonal, merecia atenção da Diocese e da Prefeitura de Campos. Se tivesse dinheiro e ainda exista, eu a compraria e a restauraria, devolvendo ao povo mais um templo para louvor de Santo Amaro.

Igreja de Santo Amaro em Goytacazes

A segunda foi erguida em Tocos, também distrito de Campos e local em que funcionou a Usina Paraíso, fábrica de açúcar, hoje desativada. A igreja passa despercebida por muitas pessoas, mas está ativa e festeja Santo Amaro no seu dia.

Igreja de Santo Amaro, em Tocos

A terceira igreja, na ordem que estou seguindo, é a mais conhecida de todas da Baixada dos Goytacazes. Ele é uma das mais antiga de todas as igrejas da região, embora a atual não seja a primeira. Há tempos, venho escrevendo que o mais antigo caminho da colonização portuguesa acompanhava o córrego do Cula entre Farol de São Tomé e Campos. Trata-se de uma simplificação. Na verdade, como mostrou Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815, vindo de Macaé, o viajante chegava a Santo Amaro e seguia para Campos.

Igreja de Santo Amaro em 15-01-2025

Nessa igreja, festeja-se anualmente, com grande movimento, o dia de Santo Amaro (15/01). Muitos peregrinos saem de Campos e de outros lugares, a pé, de automóvel, de ônibus, rumo a Santo Amaro, vila campista com muita história. Essa peregrinação pode ser comparada às de Santiago de Compostela, N. S. de Lourdes, N. S. de Fátima e a outras que existem no mundo cristão católico. Como parte dos festejos, promove-se a única cavalhada que restou no estado do Rio de Janeiro, rememorando a luta entre cristãos e mouros pela reconquista da Península Ibérica. Também marcou o dia a reunião de políticos locais, regionais e estaduais.

Sala de culto a Santo Amaro e de ex-votos

E acompanhando os festejos do ano de 2025, assisti parcialmente à missa celebrada pelo Bispo de Campos, visitei a igreja, fui à salinha de culto a Santo Amaro ao lado de ex-votos, com cabeças, seios, braços, mãos, pernas e pés de cera (creio eu), de plástico, de madeira que os devotos deixam como pagamentos de promessas atendidas. É a mercantilização da fé. Dentro da própria igreja, existem os mercadores, que chegam ao requinte de vender braços, mãos, pernas e pés direitos e esquerdos. Do lado fora, muitas barracas foram montadas para vender souvenires. Mas, o que impressiona é a fé dos fiéis, que fazem intermináveis filas para tocar a imagem de Santo Amaro e fazer uma oração. São cristãos sinceros que se justificam pela fé. Podem ser batizados ou não. Certamente não conhecem a sofisticada doutina da Igreja. Ingnoram o sentido das palavras do credo. Talvez muito provavelmente, numa postura sincrética, misturam catolismo, espiritismo e umbandismo. Vejam a Festa de Nosso Senhor do Bom Fim. Mas a igreja perdoa esse sincetismo talvez por sentimento de culpa. Santo Amaro não é mais um invasor europeu. Ele foi adotado pelo povo do Brasil, assim como tantos outros. Com todas as violências que o cristianismo cometeu, ele é a religião da grande maoiria dos brasileiros. 

Não o mesmo com pessoa de escolaridade como eu. É preciso conhecer o credo sem discutir a construção dele. Eu preciso ter fé em dogmas de difícil compreesão. E não posso falar que o cristianismo é costrução cultural, como em todas as religiões. Eu preciso ser explícito e convito da minha fé contra todas as evidências. Eis que, depois de cortejar a igreja católica para ser um fiel de doutrina, voltei a ser um católico ético e cultural, retornado às minhas convicções agnósticas. Depois de ouvir padres intolerantes, voltei à minha postura ecumênica, mais condizente com os nossos dias. Fui batizado no catolicismo. Casei-me no catolicismo. Não tomarei outros sacramentos. Certamente, no leito de morte, minha família chamará um padres para ministrar a unção dos enfermos, perdoando todos os meus pecados e abrindo as portas para o céu.

Para teólogos, existem mais mistérios que fenômemos expicáveis. Para mim, existem mais fenômenos explicáveis que mistério. 

Retomando o fio da meada depois dessa digressão, registro mais uma igreja devotada a Santo Amaro em Xexé. Pequena e moderna, ela estava aberta no dia 15. Não havia marca de festas.

Igreja de Santo Amaro em Xexé


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1 Comentários

  1. Parabéns pelo artigo! Espero no próximo ano ir conhecer a cavalhada de Santo Amaro.

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