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domingo, 11 de dezembro de 2022

Com os pés na lama


Por Arthur Soffiati


Ao sul do cabo de São Thomé, a restinga vai se adelgaçando até o ponto de se reduzir a uma estreita faixa de areia, cuja crista da praia separa e protege a planície aluvial do avanço do mar. Segundo Alberto Ribeiro Lamego, esta planície interior foi construída pelo rio Paraíba do Sul (O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1945). Na interpretação do geólogo campista, o rio evoluiu em mar aberto passando por três deltas sucessivos. Além desses, identifica ainda o pequeno delta da lagoa Feia. O avanço do primeiro braço do rio Paraíba do Sul em direção ao futuro cabo de São Tomé dividiu a grande reentrância de águas rasas, cuja linha de costa confinava com a zona cristalina, no Terciário. No final desse período, os tabuleiros já se interpunham entre a costa e o cristalino. A invasão dessa parte rasa da plataforma continental pelo que Lamego julgava ser o primeiro canal do Paraíba do Sul criou dois golfos: o da margem direita do rio, batizado por ele de golfo da lagoa Feia, e o segundo de golfo de Campos. Este foi bastante vedado com a bifurcação do leito do Paraíba do Sul, com um braço dirigindo-se para o norte até o local de sua atual foz. O golfo da lagoa Feia, porém, conservou uma enorme massa de água que se isolou do mar com seu fechamento pela estreita faixa de areia e com seu engordamento pela deposição de sedimentos transportados pelos rios Ururaí e Macabu, principalmente, antes desembocando no golfo da margem direita do rio; agora, dentro de um sistema aquático fechado. A água salgada foi sendo progressivamente substituída pela água doce dos tributários, dos transbordamentos do Paraíba do Sul e das chuvas. Formou-se, assim, a majestosa lagoa Feia.


Nesse aspecto, a tese de Lamego não é contestada nem pelos trabalhos de Gilberto Dias (“O complexo deltaico do rio Paraíba do Sul”. IV Simpósio do Quaternário no Brasil. Publicação Especial nº 2. Rio de Janeiro: CTCQ/SBG, 1981) nem pelos de Martin, Suguio, Dominguez e Flexor (Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Estado do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997). 


A principal contestação de Dias a Lamego refere-se a um delta do tipo pé de ganso em mar aberto, num trecho da costa em que impera forte energia oceânica. Em suas palavras, “O regime de ondas de alta energia na região, característica observada hoje em dia em todo o litoral brasileiro, é incompatível com o desenvolvimento de um delta deste tipo [Mississipi]; pelo contrário, segundo COLEMAN (1976), é muito provável que a alta energia das ondas seja um fator preponderante, que determina nos deltas a formação de somente um simples canal distributário, fato observado nas partes que representam a fase atual da deltação correspondente aos últimos milênios de todos os complexos deltaicos quaternários brasileiros (...) não há nada que nos autorize a afirmar que, na costa ao largo da foz do rio Paraíba do Sul, o regime de ondas tenha sido diferente nos últimos milênios.


Para Martin, Suguio, Dominguez e Flexor, o delta do rio Paraíba do Sul avança (prograda) no interior de uma laguna a partir de 5.100 antes do presente, quando o mar alcançou seu último máximo avanço (transgressão). A hipótese do delta pé de ganso é retomada, pois que, no interior de área protegida, a energia de ondas não inviabilizaria tal formação. Mas a diferença com relação à interpretação de Lamego é que a planície aluvial não se forma a partir de uma divisão da zona costeira rasa em dois golfos. No entendimento dos novos geólogos, o primeiro braço a alcançar mar aberto foi o atual desaguadouro do Paraíba do Sul. O paleocanal que Lamego e Dias consideram a primeira foz foi avançando dentro da laguna e atulhando todo seu setor leste. A lagoa Feia figura como um remanescente da grande laguna que não foi atulhado, mas vedado em sua comunicação direta com o mar por uma estreita faixa de areia ligando as restingas sul e centro da ecorregião. Tanto ela quanto o rio Paraíba do Sul reforçam essa barreira arenosa com o transporte de sedimentos que formam uma planície, em pontos com cotas abaixo do zero do mar. Se este não a invade é porque a barreira arenosa o contém e, mesmo nas transgressões (avanços) e retrogradações (recuos) posteriores a 5.100 antes do presente, a crista da praia avançou e recuou, protegendo a planície aluvial.


Recebendo água de rios que desaguavam no mar e que passaram a ser seus afluentes, como os Macabu, da Prata e Ururaí, após seu fechamento pelo cordão arenoso da praia, bem como o extravasamento do rio Paraíba do Sul em suas cheias, a lagoa buscou saídas para o excedente hídrico. As mais conhecidas eram os rios da Onça, Novo do Colégio e Castanheta, que, além de formar o rio Iguaçu ou Açu, misturavam-se em forma de teia numa intrincada rede que talvez conseguisse arrombar a crista da praia em períodos de grande pressão com água acumulada no continente e encontrar um outro e temporário caminho para o mar, além do defluente do Iguaçu, até que a abertura do rio Furado tenha estabelecido outro escoadouro para ela.

Delta da lagoa Feia. Foto do DNOS tirada antes de 1942


A considerar verídico o “Roteiro dos Sete Capitães”, a árvore nomeada de quiriba, no relato da segunda viagem dos sesmeiros a seus domínios, entre os rios Iguaçu (Açu) e dos Bagres (Macaé), em 1633, bem pode ela referir-se a siriba, ou seja, uma das duas espécies do gênero “Avicennia” da América atlântica. A descrição do local em que foi encontrado o vegetal corresponde mais a um ponto interior da planície aluvial que a algum estuário, junto à costa. O autor do texto refere-se a um conjunto de árvores, não a um exemplar, como se pode concluir da transcrição: “Acabadas as nossas divisões seguimos para o cabo de São Tomé para entrarmos para o interior, para dele tomarmos conhecimento. Aqui descansamos dois dias, desfrutando a boa hospedagem desta gente [goitacás], comendo caças e peixe fresco, que havia em grande abundância; entretanto estivemos fazendo o nosso arranjo para entrarmos para o interior (...) No dia 24 [de novembro], seguimos com os quatro naufragados, que mostravam serem os mais bem educados, o Maioral e alguns Índios, e os nossos camaradas agregados, os primeiros para nos servirem de práticos, e os segundos para que o pudesse suceder; caminhamos até às cinco horas da tarde. As campinas eram ricas, muito aprazíveis e muito férteis de erva, mais saudosas que as de fora da parte do sul; o seu local era muito próprio para a cultivação. Fizemos o nosso abarracamento para passarmos as inconstâncias da noite em um lugar que haviam umas árvores quiribas, aonde demos o mesmo apelido ao lugar (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas; LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas); GOMES, Marcelo Abreu. Macaé: Funemac Livros, 2012).


Estamos lidando com certa imprecisão. Por mais que o documento mencione um acidente geográfico mais ou menos próximo, a lagoa das Bananeiras, não nos é possível situar com clareza o local em que foi encontrada o conjunto de quiriba. Nem mesmo se tem certeza de que esta palavra indica mesmo siriba ou siribeira. O que excita nossa imaginação a encontrar manguezal na planície aluvial atrás da crista da praia, sem contato direto com o mar, é a existência ainda hoje de uma grande área de manguezal ao sul da lagoa Feia. Para explicar sua existência naquele ponto, denominado ilha da Carapeba, foram levantadas três hipóteses. Pela primeira, a planura da baixada dificultava a circulação das águas, que deveriam ora fluir em direção ao mar, pela barra do Açu, ora em direção ao continente, por  invasão das marés. Quem, do alto da crista da praia, como fizeram os sesmeiros, divisa a planície aluvial, nota que a língua salina não encontrava muita resistência em seu avanço. Não sem motivos, mais de 300 anos após a segunda viagem dos Sete Capitães, o governo de Getúlio Vargas decidiu resolver de vez os problemas de “salubridade”, de alagamento de terras para a agropecuária e de penetração de língua salina nas planícies fluminenses criando a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, em 1933.


Assim, a influência das marés, entrando pela barra do rio Iguaçu permanente ou periodicamente, poderia atingir pontos muito distantes de seu lugar de acesso aos brejos, banhados e lagoas da planície e criar condições para o desenvolvimento de manguezais, seja eliminando concorrentes de espécies exclusivas de manguezais, salinizando águas e solos, seja transportando sementes (propágulos) dessas espécies pela segunda hipótese, os possíveis e eventuais rompimentos da crista da praia pela pressão da água doce acumulada atrás dela favoreceria tanto seu escoamento para o mar quanto a entrada de água salgada na planície, também criando condições para o desenvolvimento de manguezais. Por fim, os manguezais só teriam se estabelecido ao sul da lagoa Feia após a abertura do rio Furado, em 1688, pelo capitão José de Barcelos Machado. Haveria uma quarta, mas remota, possibilidade: a de os manguezais serem remanescentes da época em que a lagoa Feia ainda mantinha contato permanente com o mar. Mas, nesse caso, a salinidade deveria ser muito elevada e os manguezais deveriam se alojar nas bocas dos rios Macabu e Ururaí.


Continuando no plano das hipóteses, inclinava-me a defender a primeira delas. A foz do rio Iguaçu, permanente ou periodicamente aberta, deveria favorecer a entrada relativamente regular para o fornecimento de sal, que criava ambientes salobros, e de sementes (propágulos) que se enraizavam nas terras propícias ao seu desenvolvimento, sem os eventos abruptos da segunda hipótese. A terceira hipótese também pode explicar a existência de manguezais nesta parte da região. Nesse caso, eles seriam resultado de intervenções humanas na faixa costeira a partir do século XVII.


Só nos é possível aquilatar a dimensão das áreas de manguezal nos arredores da Barra do Furado pelas amostras remanescentes. Morador antigo da localidade, Cândido Manoel dos Santos (Candu), com 71 à época do depoimento (1998), informou que, quando criança e jovem, o manguezal da fazenda São Miguel ocupava extensão muito maior que atualmente. Da mesma forma, o manguezal da ilha da Carapeba era muito mais dilatado, como testemunha a própria área outrora recoberta por esse ecossistema.

Casa em que morou Cândido Manoel dos Santos (Candu). Barra do Furado


Originalmente alongado e espraiado numa planície aluvial cortada por canais naturais e construídos, os dois fragmentos de mangue apresentam a típica feição de um antigo manguezal ribeirinho, segundo classificação de Cintrón, Lugo e Martínez (“Structural and functional properties of mangrove forests. A Symposium Signaling the Completion of the ‘Flora of Panama”. Monographs in Systematic Botany. Missouri: Botanical Garden, 1980). Todavia, não se pode assegurar que a comunicação com o mar das águas interiores que os banhavam fosse permanente, mesmo porque só temos hipóteses acerca das duas manchas. Ambas podem ter se constituído com o transporte de sementes pelas marés em aberturas periódicas da barra do Açu, da Barra do Furado ou das comportas instaladas pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Por outro lado, elas não se enquadram como manguezais de bacia ou depressão, visto viverem a maior parte do tempo em terras emersas. Talvez ocorra com eles o que Yara Schaeffer-Novelli explicou ao autor em comunicação pessoal: “... em termos de trocas energéticas, esse bosque passa a exportar matéria orgânica dissolvida (e não mais particulada) e, a importação passa a ficar na dependência das drenagens terrestres, chuvas e, quem sabe, um que outro ‘transbordamento’ dos rios mais próximos (Carta ao autor datada de 23/04/2001).


  Atualmente, o manguezal da ilha da Carapeba constitui-se exclusivamente de  mangue branco, havendo siribeira no manguezal da fazenda São Miguel, mas nada nos autoriza a excluir a presença, no passado, de mangue vermelho.


Nestas rápidas considerações, encontramos um manguezal ribeirinho típico, a exemplo daqueles que existem nos rios Itapemirim, Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. Trata-se do manguezal da ilha da Carapeba, o único na região a contar com um apicum (planície salgada) em sua retaguarda. Agora, cresceu também um típico manguezal ribeirinho em Barra do Furado com um bosque monoespecífico de mangue branco. Na fazenda São Miguel, o manguezal parece ser do tipo de bacia. Na restinga de Paraíba do Sul, os manguezais das lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu podem também ser considerados de bacia, já que suas barras ficam fechadas por longo tempo. 


Voltando às três hipóteses e aos esclarecimentos de Cândido Manoel dos Santos (Candu). Ele tinha 71 anos em 1998. Portanto, nasceu em 1927.  Segundo suas palavras. Havia um grande manguezal na área de Barra do Furado na sua infância. As sementes de mangue só poderiam chegar ao local pelas marés que subiam o rio Iguaçu ou pelas aberturas anuais da vala do Furado, pois ainda não existia o canal da Flecha. Havia ainda uma terceira hipótese: a abertura da Barra Velha no Lagamar. Seria difícil as marés ultrapassarem o banhado da Boa Vista, no curso do rio Iguaçu, e atingirem Barra do Furado. Seria difícil também a entrada de sementes com a abertura da vala do Furado e com as raras aberturas da Barra Velha. Nessas ocasiões, a água doce fluía para o mar com muito ímpeto, impedindo a entrada de sementes. Mas não era impossível. Depois que o volume de água diminuía, ambas as barras ainda ficavam abertas por algum tempo. As sementes poderiam, então, colonizar a área.


O canal da Flecha começou a ser aberto em 1942. A abertura foi concluída em 1949. Ele criaria melhores condições para a penetração de sementes de mangue na área interior, colonizando-a até a fazenda São Miguel, nas margens do antigo rio Iguaçu. Poderiam até ir mais longe. Talvez Candu tenha se enganado. Talvez, o manguezal tenha se formado na sua juventude, quando o canal da Flecha foi aberto. Ou talvez Candu esteja certo: o mangue se formou com a entrada de sementes pelo rio Iguaçu, pela vala do Furado ou pela abertura de Barra Velha. Creio que só a palinologia (estudo da idade do pólen) pode elucidar este enigma. Seja como for, os manguezais de Barra do Furado existem e devem ser protegidos por Campos (Carapeba) e Quissamã (Barra do Furado e Fazenda São Miguel). Há previsão legal de proteção para o mangue da Carapeba, mas nunca sai do papel. Caberia, ao longo dele, a construção de uma passarela para evitar que turistas afundem os pés na lama e destruam raízes respiratórias das plantas, além de proporcionar mais conforto e segurança. Não custa sonhar.

Com os pés na lama


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