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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Aspectos naturais e culturais de Barra do Furado (II)

 Por Arthur Soffiati


Quando os Sete Capitães empreenderam as três viagens a suas sesmarias (terras doadas), entre 1632 e 1634, a vala do Furado ainda não existia. Como bem descreve o Roteiro, as águas da lagoa Feia fluíam, ao sul, por uma complexa rede de canais que se reuniam no chamado rio Iguaçu, correndo na retaguarda da crista da praia do Farol (que ainda não tinha esse nome) até encontrar um ponto na costa em que pudesse chegar ao mar com pouca resistência deste. Tal ponto situa-se na barra da atual lagoa do Açu, remanescente do antigo e extinto rio Iguaçu. O Roteiro registra o encontro dos sesmeiros com grupos indígenas. Um grupo se assentava ao sul da lagoa Feia. Foi nesse ponto que os Sete Capitães avistaram pela primeira vez a grande lagoa e ficaram impressionados com suas dimensões e com sua fúria. Era dia de tempestade: “Era um grandíssimo lago ou lagoa d’água doce, a qual estava tão agitada com o vento sudoeste, tão crespas suas águas e tão turvas que metiam horror: aonde lhe demos o apelido de Lagoa-feia. Neste mesmo lugar vimos as suas embarcações de pesca; três traves de paus aguçados nas cabeças para cortar as águas e atados com umas travessas nas mesmas cabeças, era formada a dita embarcação; a forma de jangada porém muito bem organizada.” (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur e GOMES, Marcelo Abreu. Roteiro dos Sete Capitães. Macaé: Funemac Livros, 2012).


Outro grupo de nativos assentava-se nas proximidades do cabo de São Tomé. Entre eles, viviam náufragos, degredados e um escrevo fugido, ao que se suspeitava. Esses nativos faziam parte da nação goitacá, que, por sua vez, integrava o grande grupo linguístico macro-jê. Esse grupo tinha representantes em todo futuro norte/noroeste fluminense, sul capixaba e Zona da Mata mineira, falando línguas distintas mas aparentadas (FREIRE, José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1977).


Todos esses povos viviam num ambiente pródigo em água e alimentos. Mesmo conhecendo a agricultura, a cerâmica e o polimento de pedra, sua economia continuava a ser extrativista, dada a abundância de recursos representados por invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Os Sete Capitães ficaram impressionados com tal fartura.


As terras dos sete sesmeiros estendiam-se, pela costa, da foz do rio Macaé à foz do rio Iguaçu. Esse segundo ficou reduzido, hoje, a lagoa do Açu. Para o interior, as sesmarias terminavam no alto da Serra do Mar. Nenhum europeu chegou lá antes do século XIX por medo do "certão de índios brabos". A costa foi dividida em sete lotes. Os Sete Capitães ficaram fascinados pelo dinheiro a ser auferido com aqueles imensos campos nativos, onde bastava soltar o gado para pastar. Ao regressarem, deixaram dois índios mestiços cuidando de currais. Retornaram mais duas vezes, em 1633 e 1634, batizando acidentes geográficos e iniciando uma colonização contínua em moldes europeus.


Não apenas os Sete Capitães requereram terras na planície Goytacá. Também os jesuítas, os beneditinos e a família Correia de Sá e Benevides se instalaram nela. Quatro grandes propriedades rurais se formaram: um herdeiro colateral dos Sete Capitães – José de Barcelos Machado – formou o Morgado de Capivari, ao sul da Lagoa Feia. Os jesuítas formaram extensos domínios na planície e nos tabuleiros. Na baixada, havia ainda as posses dos beneditinos. E uma vasta propriedade pertencia aos viscondes de Asseca, descendentes de Salvador Correia de Sá e Benevides. Entre elas, espalhavam-se pequenas posses (alodiais), que orbitavam em torno das grandes propriedades.


Aos poucos, no século XVII, ergueu-se um povoado na planície aluvial que deu origem a Campos. Em 1657, o capitão André Martins da Palma escrevia ao rei de Portugal uma “Representação sobre os meios de promover a povoação e desenvolvimento dos campos de Goytacazes”, registrando que nela: "Há uma alagoa mui grande para a comunicação dos povos vizinhos, que, sendo de água doce, se não vê terra, navegando-se por muitos dias, e é tão dilatada que por um mês e mais se não corre" (PALMA, André Martins da. Representação sobre os meios de promover a povoação e desenvolvimento dos campos dos Goitacases em 1657. Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil tomo XLVII, parte I. Rio de Janeiro: Laemmert, 1884). Ainda não havia sido aberta a vala do Furado no ano da representação. Era outra então a geografia da região. A água da lagoa Feia chegava ao mar por uma infinidade de drenos naturais que formavam o rio Iguaçu. A vazão era grande, mas o fluxo de escoamento era muito lento. As atividades rurais, sobretudo a pecuária, precisavam das terras submersas. O escoamento de água para o mar devia ser mais rápido, sobretudo na estação das chuvas.


Em 1688, desejando abreviar o escoamento do grande volume de água de chuva acumulada no continente, o Capitão José de Barcelos Machado, um dos herdeiros dos Sete Capitães, abriu a famosa vala do Furado, em local que futuramente vai se situar a desembocadura do canal da Flecha. Nenhum mapa da lagoa Feia no século XVII é conhecido. Por esta razão, valemo-nos do considerado mais antigo mapa da capitania do Rio de Janeiro, desenhado por cartógrafo anônimo em 1747 (ANÔNIMO. Mapa sem título da Baixada Fluminense publicado em LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945).

Vala e Barra do Furado (marcadas com um X vermelho) no mais antigo mapa conhecido da baixada campista (1747)


O primeiro autor a registrar com minúcias a dinâmica hídrica do sul da lagoa Feia foi o capitão de infantaria Manoel Martins do Couto Reis. Conceituado cartógrafo, ele foi designado pelo vice-rei do Brasil, Luiz de Vasconcelos e Souza, para elaborar uma carta do então Distrito dos Campos dos Goytacazes, parte da Capitania do Rio de Janeiro. Além de detalhada carta, ele redigiu um minucioso relatório para explicá-la. Sobre Barra do Furado, ele escreveu: “Sai dela [da lagoa Feia] o Rio dos Canudos, o qual vai recebendo outras águas de muitos córregos e brejos inominados: com este excesso toma nova denominação de Vala Grande [...] como ele não tinha toda a suficiência necessária para receber tantas águas dispersas de circunvizinhança e dessecar o campos, tomou ao seu cuidado o Capitão José de Barcelos Machado – há mais de cem anos – mandar abrir uma larga e profunda vala em que melhor se encanasse aquele rio, e tivesse mais pronta e desembaraçada expedição toda a água que para ele se encaminhasse, a fim de se esgotarem as suas terras (COUTO REIS, Manoel Martins do. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).      

Sul da lagoa Feia, Barra do Furado e foz do rio Iguaçu segundo Couto Reis (1785)


O dia a dia de Barra do Furado merece pesquisa. Anualmente, ela era aberta pelos escravos dos Jesuítas para escoamento das águas de chuva acumuladas no continente a fim de que fluíssem para o mar e permitisse a agropecuária. Com a expulsão dos Jesuítas pelo marquês de Pombal, em 1759, a baixada foi abandonada. De tempos em tempos, os canais naturais passavam por desobstrução, mas geralmente de forma parcial, por proprietários rurais ou pela Câmara Municipal. Todo esse trabalho deve estar registrado em documentos da Companhia de Jesus e da Câmara Municipal de Campos. Trata-se de um tema que merece pesquisa.


Enquanto as investigações não lançam mais luz sobre o local, fiquemos com os grandes depoimentos sobre ele. Em 1815, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied passou por Barra do Furado e comentou: “A cinco ou seis léguas de Ubatuba, há um lugar chamado Barra do Furado, onde a lagoa Feia se lança no mar. A lagoa Feia divide-se em duas partes, ligadas por um canal; a sua configuração não está rigorosamente inscrita em meu mapa, porque apenas a atravessei e não lhe pude abranger toda a superfície. De acordo com a ‘Corografia Brasílica’, a parte norte tem cerca de seis léguas de comprimento de este a oeste, e perto de quatro léguas de largura; a parte sul, cinco léguas de comprimento e uma e meia de largura. Peixe abundante, água doce. A extensa superfície é geralmente agitada pelo vento e, por isso, quase sempre perigosa para canoas; não dá calado a embarcações maiores. A Barra do Furado seca nos períodos em que o nível da água baixa. Toda a região é recortada ao longo da costa, de numerosos lagos, muitos dos quais omitidos no mapa. Com tal abundância d’água e a fertilidade do solo, cedo se tornaria uma das zonas mais produtivas do país, caso a habitasse um povo mais ativo e laborioso (WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989).


Ao referir-se à Barrado Furado como um lugar, o príncipe naturalista não deixa claro se já existia algum tipo de povoação. Mas o sul da lagoa Feia já era ocupado, pelo menos esparsamente, por pescadores, pois na casa de um deles o príncipe e sua comitiva se hospedaram. Aliás, pelo menos três desenhos referentes ao sul da grande lagoa, o alemão deixou. Eles podem ser considerados a mais antiga representação visual de pescadores de toda a planície. Ao mesmo tempo, na avaliação de Maximiliano, o sul da lagoa Feia seria uma das áreas mais desenvolvidas do Brasil se houvesse aqui um povo mais ativo e laborioso. De fato, havia muita água e fauna. Mas o príncipe não pôde considerar a excessiva presença de sal na água e no solo.

Pescador e pescadora no rio Bragança, sul da lagoa Feia, em 1815. Desenho de Wied-Neuwied


Maximiliano menciona “Corografia brasílica”, de Manuel Aires de Casal, livro publicado em 1817 e que o príncipe consultou ao voltar para a Europa, onde publicou seu diário da viagem ao Brasil em dois volumes, nos anos de 1820 e 1821. Aires de Casal era português e padre. Seu livro de 1817 é o primeiro levantamento de informações geográficas e históricas de todas as capitanias do Brasil. Nesse livro, foi publicada pela primeira vez a carta escrita por Pero Vaz de Caminha quando da chegada dos portugueses às terras que seriam chamadas de Brasil. Sobre Barra do Furado, o padre escreveu de segunda mão, pois não seria possível, naquele longínquo tempo, percorrer todo o território brasileiro, ainda colônia de Portugal. Em suas palavras, a lagoa Feia: “Deságua por vários canais, que com amiudados rodeios formam grande número de ilhas, sem que nenhum deles tenha saída para o oceano, por causa dum extensíssimo e alto cômoro de areia grossa e firme, formado pelo mar. Todos estes sangradouros se reúnem em diversos pontos, e formam outra lagoa com muitas léguas de comprido, e largura dum espaçoso rio prolongada como o mencionado cômoro, através do qual se abre anualmente à enxada em certa paragem um desaguadouro, que se torna em um rio considerável com o nome de Furado, enquanto os receptáculos interiores não chegam ao nível natural, o qual é imediatamente entupido pelo mesmo mar. Iguaçu ou rio Castanheta se chama o meridional e principal dos mencionados canais.” (CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica. São Paulo: Edusp, 1976).


Trata-se de uma descrição bastante fiel. Mas ainda não há menção a qualquer tipo de povoado.


Não tão minuciosa assim é a descrição do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que excursionou pela capitania do Rio de Janeiro em 1818. Sobre Barra do Furado, ele escreve: “No momento de lançar-se no oceano o rio do Forno reúne-se a outro rio, o Bragança ou Laranjeira, que vem de lado diametralmente oposto. A embocadura dos dois rios, conhecida sob o nome de Barra do Furado, é muito estreita e pouco profunda, somente dando entrada às embarcações muito pequenas, e parece que na estação seca nenhuma embarcação pode transpô-la. É a Barra do Furado, que serve de limite entre os distritos de Campos e Macaé (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito de Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1974).


A referência estendida à Barra do Furado por José Carneiro da Silva, em seu livro de 1819, está no apêndice: “A barra do rio Furado é estreita, e as águas deste rio correm com bastante velocidade em uma costa direita, arenosa e sem abrigo. É tradicional que estando uma embarcação em perigo, fora salva por algumas pessoas que da praia acenaram e mostraram a abertura da barra, por onde entrou a embarcação livrando-se do perigo. Uma outra embarcação em grande perigo, em uma noite tempestuosa, achou-se quase milagrosamente salva nas quietas águas do rio Furado; passando a tempestade saiu perfeitamente barra afora. Braz Domingues, o principal fundador da Igreja do Seminário da Lapa, achava-se nesta embarcação (SILVA, José Carneiro da. Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país, 3ª edição. Campos dos Goytacazes, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010). 


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