Por Arthur Soffiati
Não contamos ainda com um estudo sistemático sobre a colonização da Baixada dos Goytacazes. Existem apenas algumas monografias e trabalhos acadêmicos, sendo o clássico “A terra goitacá”, de Alberto Frederico de Morais Lamego, sempre o mais conhecido e citado. No geral, a baixada tem sido interpretada mais pela perspectiva de sua formação geológica do que pela histórica. Campos dos Goytacazes tem merecido maior destaque tanto pela antiga historiografia quanto por estudos monográficos. O que se pretende nesse artigo é trazer uma pequena contribuição relacionada aos aspectos naturais e sociais sobre Barra do Furado.
Recuando 20 mil anos no tempo, presume-se que existia, onde hoje se estende a planície fluviomarinha dos Goytacazes, um antigo continente formado por tabuleiros (Formação Barreiras), a julgar pelos trabalhos de Martin, Suguio, Dominguez e Flexor. Esse continente avançava mais no mar e integrava uma grande unidade de tabuleiros que se estendia das atuais Quissamã a Marataízes. O rio Paraíba do Sul já corria por ele e dividia dois tipos de relevo: na margem direita, estendiam-se de tabuleiros baixos, como ainda se encontra em Quissamã. Na margem esquerda, o terreno ia se elevando e formava vales por onde corriam riachos que desembocavam no mar, junto ao qual se elevavam falésias.
Os rios Preto, Muriaé e Macabu eram ou deviam ser afluentes do Paraíba do Sul. Devia também existir uma ligação dos rios Imbé e Urubu ao grande rio pela lagoa de Cima. Não existiam ainda o rio Ururaí, os drenos naturais da margem direita do rio Paraíba do Sul e a grande lagoa Feia.
Suposto continente anterior ao atual assinalado em laranja, marcando-se em verde as restingas de Jurubatiba e de Marobá
A partir de 10 mil anos passados, o mar iniciou, então, um processo de transgressão (avanço), o maior nesse tempo milenar até agora. Ela invadiu o leito do Paraíba do Sul e erodiu toda parte baixa do antigo continente de Barreiras. Suas águas chegaram até as proximidades de lagoa de Cima, se é que não mesmo a inundaram. A antiga baixada se transformou numa grande laguna cercada de ilhas-barreira. Essa laguna alcançava o pé da zona serrana.
Transgressão máxima em 5.100 A.P. sobre o antigo continente, segundo Martin, Suguio, Dominguez e Flexor
Com o fim do avanço marinho, por volta de 5.100 anos antes do presente, o mar começou a recuar (regressão marinha). No Oriente Médio e no Egito, nasciam as duas mais antigas civilizações conhecidas. Aqui, o rio Paraíba do Sul começou a construir a grande planície fluviomarinha, transportando sedimentos da zona serrana e dos tabuleiros (ARGENTO Mauro Sergio Fernandes. A contribuição dos sistemas cristalino e barreira na formação da planície deltaica do Paraíba do Sul. Rio Claro: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 1987 (tese de doutorado). Além dos sedimentos aluvionares carreados, o rio Paraíba do Sul funcionou como um grande interceptor hídrico que reteve areia de um lado e do outro, formando uma grande restinga que arrematou a planície aluvial, estendendo-se de uma restinga mais antiga entre o rio Macaé e as imediações de Barra do Furado até o rio Guaxindiba. Constituiu-se, assim, a maior restinga no interior do hoje estado do Rio de Janeiro. Sua formação não se processou conforme entendimento de Alberto Ribeiro Lamego (LAMEGO, Alberto Ribeiro. Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1955 e LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945), mas como explicação atual de Martin, Suguio, Dominguez e Flexor (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M. L.; e FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997). Ao fim provisório do processo (em geologia, tudo é provisório, embora possa ser estável), formou-se uma grande planície na margem direita do rio Paraíba do Sul mais baixa que seu leito de cheia. Isso significa que toda água transbordada pela margem direita não voltava mais ao rio uma vez finda a cheia. A água corria pelos muitos drenos naturais e se alastrava em depressões que formavam lagoas rasas. A maior delas era a lagoa Feia. Muitas outras lagoas grandes também se formaram. O escoamento desse mundo aquático para o mar era muito lento por falta de sistemas de drenagem. O maior deles era o próprio rio Paraíba do Sul. Logo abaixo, situavam-se as atuais lagoas de Gruçaí e Iquipari. Barrada por uma alta e larga crista de praia, as águas da lagoa Feia e do próprio Paraíba do Sul corriam por um dreno junto à praia ao sul que recebeu o nome de rio Iguaçu.
Por mais que a evaporação subtraísse água dessa grande cisterna, o volume acumulado buscou saídas de escoamento por uma intrincada rede de canais, vários deles associados ao paleodelta do Paraíba do Sul, que, segundo Lamego, deram origem a um novo delta, assim explanado por ele: “Parte dessas águas [da lagoa Feia] junta-se às do Paraíba nos velhos braços do primitivo delta que sulcam a planície da Boa Vista, formando os rios Carapebas, do Viegas, do Furado, Bragança, Quebra-Cangalhas e o córrego da Tapagem [...] Com exceção do Carapebas que se dirige para a Barra Furado, o caminho natural dessa rede labiríntica era o rio Açu que também recebe na margem esquerda o rio Novo e vai buscar uma saída para o mar, num tortuoso curso entre restingas” (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé”. Boletim nº 154. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1955).
Antes do século XX, nenhum estudioso conseguiu descrever a formação da planície do rio Paraíba do Sul. O(s) autor(es) do “Roteiro dos Sete Capitães” ficara(m) pasmo(s) com a intrincada malha de rios e lagoas, constatando que, com certeza mesmo, só se podia afirmar que as águas da grande lagoa fluíam em direção ao rio Açu. A passagem a seguir constitui o primeiro registro da planície fluviomarinha norte fluminense: “caminhamos beirando a campina da parte do noroeste; faziam lagos de água, e destas águas é formado o rio Iguaçu. Ele tem seu nascimento na grande lagoa Feia, a que lhe demos o apelido, nos fundos [do] saco apantanado traz sua corrente a leste; suas águas são encanadas por uma espécie de rio, fazendo suas voltas, aonde traz sua corrente pela parte do sudoeste pelo sítio do curral do capitão Monteiro, na Costaneira, apelido que ele lhe deu; segue até certa altura da campina, seguindo para leste para a parte da marinha. Neste lugar finda o dito encanamento. Suas águas se espraiam pela dita campina, sempre a leste, não muito longe da marinha; deste lugar fazem sua quebra a procurar o nordeste, isto até a barra do dito Iguaçu, ao norte do cabo de São Tomé.” (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur e GOMES, Marcelo Abreu. Roteiro dos Sete Capitães. Macaé: Funemac Livros, 2012).
Planície fluviomarinha do Paraíba do Sul próximo a seu fechamento segundo Martin, Suguio, Dominguez e Flexor
A vegetação nativa que se desenvolveu ao sul da lagoa Feia foi classificada por Veloso, Rangel Filho e Lima como pioneira de influência fluvial, assim definida por eles: “[...] comunidades vegetais das planícies aluviais que refletem os efeitos das cheias dos rios nas épocas chuvosas ou, então, das depressões alagáveis todos os anos. Nestes terrenos aluviais, conforme a quantidade de água empoçada e ainda do tempo que ele permanece na área, as comunidades vegetais vão desde a pantanosa criptofítica (hidrófitos) até os terraços alagáveis temporariamente, dos terófitos, geófitos e caméfitos, onde, em muitas áreas, as Palmae dos gêneros Euterpe e Mauritia se agregam, constituindo o açaizal e o buritizal no Norte do País. Nos pântanos, o gênero cosmopolita Typha fica confinado a um ambiente especializado, diferente dos gêneros Cyperus e Juncus, que são exclusivos das área pantanosas dos trópicos (VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa; e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991).
Hidrófitas são plantas que se desenvolvem na água, seja sob ela, seja na superfície. Terófitas são espécies vegetais que têm um ciclo de vida anual e que passam a estação desfavorável sob a forma de semente, debaixo da terra. Geófita é a espécie vegetal que permanece subterrânea durante a época desfavorável para seu crescimento, sob a forma de bulbo, rizoma, tubérculo ou raízes gemíferas. Caméfitas são plantas de pequeno porte com caule herbáceo ou lenhoso. Palmae designa a família das palmeiras. Typha é o nome de um gênero botânico que inclui a taboa. Cyperus e Juncus são gêneros botânicos.
Mas deve-se levar em conta a salinidade do local pela proximidade da praia. O sal já estava presente antes da abertura da vala do Furado, em 1688. A diferença de 0,005 m entre a parte interna do local em que seria aberta a vala do Furado e a foz do rio Iguaçu permitiria que as marés simples e altas (sizígia) alcançassem longa distância e conduzissem sementes (propágulos) das plantas de mangue por longa distância. Uma passagem do romance “O coronel e o lobisomem”, de José Cândido de Carvalho, permite chegar-se a essa conclusão porque o personagem se movimenta na praia do atual do Farol de São Tomé: “Andava eu nessas vasculhações de mato quando reparei que do espelho das águas uma renda esgarçada subia, na certa a respiração do brejal. Tratei de ficar em chão seco, que o bafo do mangue podia trazer contaminação malina. O estreleiro é que não esperou outra providência. Foi sentir de novo o coronel em sela e largar em corrida sem juízo. Lá fui, como bem entendeu o desensofrido, encalhar numa plantação cheirosa. Nunca vi tanta brancura derramada. Era um véu de noiva estendido, remessa sobre remessa de lírio-d’água. Não contive o meu parecer.” (CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972).
Mas, considerando-se que as marés, quando avançavam pelo antigo rio Iguaçu, encontravam a grande massa de água doce no banhado da Boa Vista, que deveria dissolver a salinidade, é mais prudente acreditar que as marés não atingiam diretamente o rio Iguaçu no ponto em que seria rasgada a vala do Furado. Assim, a hipótese mais consistente para a presença de manguezais no canal da Flecha e imediações relaciona-se à abertura da vala do Furado. Era difícil a entrada de propágulos (sementes de mangue) quando a barra se abria ou era aberta, mas não impossível. A hipótese mais consistente para explicar as três massas de manguezais nas margens do canal da Flecha e imediações é a abertura dele entre 1942 e 1949.
Manguezal de Barra do Furado
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