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sábado, 26 de janeiro de 2019

A costa de Campos num antigo mapa

Por Arthur Soffiati

Até o final do século XIX, as regiões canavieiras do Brasil eram povoadas pelos engenhos antigos. Eram pequenas e rudimentares unidades de produção movidas a energia animal e mesmo por escravos. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, ao passar por Campos dos Goytacazes, em 1818, registrou que o distrito contava com cerca de 56 engenhos de açúcar, no ano de 1769. Em 1778, esse número se elevara para 168. Entre 1779 e 1801, 200 engenhos fumegavam no âmbito da região administrativa e, na época da sua passagem pela vila, havia 400 engenhos de açúcar e 12 destilarias (Auguste de Saint-Hilaire. “Viagem pelo Distrito de Diamantes e litoral do Brasil”. Belo Horizonte: São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1974). 

A partir de 1870, a indústria açucareira das regiões canavieiras do Brasil, inclusive o atual Norte Fluminense, assistiram a um grande processo de modernização. Os inúmeros pequenos engenhos artesanais foram substituídos pelos engenhos centrais e pelas usinas, grandes unidades de produção movidas a vapor. Em 1917, o publicista João Barreto escrevia que "Campos conta com perto de 30 usinas de açúcar. Por esse aspecto, se acha em condição superior a Pernambuco. Aí ainda se encontra grande número de engenhos – banguês – o que é raro, raríssimo mesmo, no município de Campos." E anotou que "...a produção de açúcar em Campos poderia ser o triplo do que é. Poderia ser de 3.000.000 sacas." (“A zona açucareira. - Estado do Rio de Janeiro - aspectos políticos e econômicos: o Sr. Nilo Peçanha”. Rio de Janeiro: Tip. Jornal do Comercio, 1917).

Tudo indica que o aumento da capacidade produtiva das novas fábricas exigiu um correspondente aumento da produção de cana. Instalada numa imensa planície fluviomarinha, a indústria açucareira esbarrou, naquele momento de sua expansão, em limitações impostas pela natureza. Reclamava-se também da insalubridade da região, coberta por uma infinidade de lagoas e brejos. Em 1903, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito escrevia: "Estas terras, umas permanentes e outras periodicamente encharcadas, em lugar de se tornarem fontes de vitalidade e de riqueza, permanecem distribuidoras nosogênicas e mantenedoras da miséria que deveriam corrigir e transformar." (“Saneamento de Campos”. Campos: Typographia de Silva, Carneiro e Cia., 1903)

Em 1935, a imprensa local e as representações de classe ainda reivindicavam do governo obras de drenagem e de saneamento para erradicar a malária (editorial "Socorramos os distritos – a zona do Muriaé dizimada pela febre palustre" e a notícia "A epidemia de paludismo", ambos publicados na “Folha do Commercio”, Campos, respectivamente em 08/01/1935 e 24/01/1935). Em resumo, pode-se concluir que os aproximadamente 40 mil hectares de terra ocupados pela indústria açucareira, em fins do século XIX, assemelhavam-se, aos olhos dos proprietários rurais e dos usineiros, a uma verdadeira ilha de prosperidade em meio às muitas terras não aproveitadas por estarem cobertas pela água das lagoas. Para continuar o "progresso", era necessário drenar brejos, banhados e lagoas, jogando água doce ao mar.

Alimentados por essa concepção triunfalista, cada vez mais explicitada a partir da segunda metade do século XIX, os governos imperial e republicano ou da Província e depois Estado do Rio de Janeiro iriam criar comissões de saneamento ou permitiriam que elas se constituíssem por concessão. 

A primeira delas foi a comissão do Major Rangel de Vasconcelos, nomeada pelo governo imperial em 1883. Através de contrato celebrado em 16 de abril de 1889 e encerrado em 22 de janeiro de 1897, foi concedida ao engenheiro civil João Teixeira Soares e ao Dr. Joaquim Pereira dos Santos autorização para dragagem de rios e drenagem de terras em todos os pontos da planície do norte fluminense. Tendo como chefe o engenheiro João Teixeira Soares, depois substituído pelo engenheiro Marcelino Ramos da Silva, foi criada, pelo Governo Estadual, em 1894, e dissolvida em 1902, a Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro. Entre 26 de maio de 1902 e 22 de janeiro de 1904, foi concedida pelo Governo Estadual permissão ao Dr. Francisco Ribeiro Moura Escobar para executar obras hidráulicas no norte fluminense. A 26 de fevereiro de 1910, o governo federal criou a Comissão Federal de Saneamento da Baixada, sob a chefia de Marcelino Ramos da Silva, que, um ano depois, foi substituído pelo engenheiro Fábio Hostílio de Moraes Rego. Foi dissolvida em 30 de junho de 1916. De 21 de setembro a 31 de dezembro de 1912, vigorou a Comissão do Porto de São João da Barra, chefiada pelo engenheiro José Martins Romeu. Sucederam-se a Comissão de Estudos para o restabelecimento do canal Campos-Macaé, criada em 3 de julho de 1918 e encerrada em 29 de abril de 1922; a Fiscalização da Baixada Fluminense, criada em 31 de dezembro de 1921; a Empresa de Melhoramentos da Baixada Fluminense, concessão federal ao engenheiro Alencar Lima e ao Banco Português, entre 11 de março de 1921 e 12 de fevereiro de 1931; a Comissão de Estudos e Obras contra as Inundações da Lagoa Feia e Campos de Santa Cruz, que funcionou entre julho de 1925 a janeiro de 1928; e a Comissão de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro, criada pelo Governo Estadual, em junho de 1929 e atuando até 1930.

A única que teve longa vida foi a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, criada pelo governo federal em 1933. No ano seguinte, o engenheiro Hildebrando de Araujo Góes, seu chefe, apresentou um relatório sobre tudo que se pretendeu fazer, em vão, nas quatro baixadas fluminenses pelas comissões anteriores e o que era necessário fazer. De todas as áreas do norte fluminense, a mais crucial para a dragagem e drenagem era a situada entre o rio Paraíba do Sul e a barra da vala do Furado, que já existia desde 1688. Era necessário, portanto, começar o trabalho pela margem direita do grande rio. A Comissão passou a se chamar Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) em 1940, com poder de atuar em todo território nacional. 

Ao longo da década de 1940, a estrutura de drenagem já estava montada. Em substituição à vala do Furado, foi aberto o canal da Flecha, que funcionaria como um segundo rio Paraíba do Sul. Entre ambos, foi aberta uma complexa rede de canais. Em 1945, o geólogo Alberto Ribeiro Lamego escrevia sobre a fisionomia original da planície: “Centenas de lagoas, de brejais e alagadiços; do banhado imenso à insignificante poça há depressões sem conta; pântanos que recebem lavoura na estiagem e que as afoga em tempos d'água; tremedais perenemente inacessíveis, baixadas atoladiças; charcos intermitentes chupados pelo sol e que alagam de novo sob as chuvaradas; atoleiros barrando estradas; lamaçais engolindo o gado; o Paraíba transbordante e devastador, galgando as ribanceiras, espraiando-se em torrentes de rumo incerto, ao sabor de caminhos d'água esvanecidos num delta fossilizado; a malária, a ancilostomíase, as endemias latentes...” (“O homem e o brejo”, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lidador, 1974). Daí seu entusiasmo com as obras do DNOS, ainda que ele levantasse um grande problema. Podia-se, pela dragagem, transferir água de uma lagoa para outra e para outra ainda. Ele apenas levantava o problema que era jogar toda essa água ao mar numa costa em que as correntes e as ondas eram tão violentas. 

Embora a Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro, criada em 1894, não tenha obtido sucesso na tarefa de drenagem (saneamento), seu chefe, Marcelino Ramos da Silva, executou um excelente trabalho de levantamento cartográfico que foi aproveitado pelas comissões posteriores. Seus mapas já se utilizam do sistema métrico decimal. Durante anos, procurei o mapa geral que o engenheiro produziu, atribuindo à lagoa Feia a área de 370 km2. Consegui apenas um mapa parcial. Contudo, recentemente, o historiador Genilson Paes Soares presenteou-me com o tão desejado mapa geral, que utilizo aqui para examinar a costa de Campos, ou seja, o trecho litorâneo que se estende de Barra do Açu à Barra do Furado.

Examinando este mapa geral, de 1896, veremos a lagoa Feia em seu esplendor, não muito diferente daquela que os Sete Capitães conheceram maravilhados em 1632. Veremos também a profusão de lagoas e de canais naturais na baixada, tanto na margem direita quanto na margem esquerda do rio Paraíba do Sul. Os canais naturais foram retilinizados e aproveitados pelo DNOS para drenar a infinidade de lagoas.
Mapa geral da baixada do norte fluminense
produzido por Marcelino Ramos da Silva em 1896

Recortando o mapa e centrando-o na lagoa Feia, verificamos que ela apresenta um formato arredondado no setor norte com três ramificações no setor sul, duas delas nomeadas de lagoas do Tatu e de Dentro. A de Dentro foi praticamente drenada. Ao norte, a lagoa do Jesus também foi extinta. Ainda no setor norte, do lado direito da lagoa, aterros criaram a lagoa dos Jacarés numa grande enseada. Ao sul, a lagoa tinha um prolongamento paralelo à costa formado pelas lagoas do Luciano e da Ribeira. Ambas apresentam aspecto deplorável atualmente. Com tanta drenagem, o equilíbrio hídrico foi radicalmente alterado. Ao sul da lagoa Feia, a água doce se encontra com a água salgada na superfície e no lençol freático. A excessiva drenagem permitiu o avanço da língua salina.
Mapa de Marcelino Ramos da Silva com foco na lagoa Feia

Recortando mais ainda o mapa para realçar a zona costeira de Campos, notaremos seus dois limites: as Barras do Açu e do Furado. A divisa entre Campos e Macaé (Quissamã ainda não existia como município) era fixada no rio Velho, nomeado como rio do Furado no mapa. Tanto ele quanto os rios Barro Vermelho, Ingá, Novo, da Onça, do Valentim, do Colégio, das Capivaras, Tucum e do Veiga (cito apenas os registrados no mapa, já que havia muitos mais) formavam o caudaloso e imponente rio Iguaçu ou Açu. 

O Farol indicava realmente um farol para orientar os navegantes quanto ao perigo dos baixios do cabo de São Tomé. Entre Barra do Açu e Barra do Furado, uma estreita língua de areia liga duas restingas: a norte e a sul. Para fins de pesquisa, venho denominando a do norte de Restinga de Paraíba do Sul e a do sul de Restinga de Jurubatiba. Essa delgada faixa de areia entre ambas as restingas é o traço peculiar da costa de Campos.

O mapa mostra também que a praia do Farol se chamava praia do Furado em ambos os lados de Barra do Furado. Depois que este ponto foi ligado à lagoa Feia pelo canal da Flecha, a costa campista conta com três nomes para a mesma praia: Boa Vista, Farol e Xexé. Não existiam ainda os núcleos urbanos do Farol e de Xexé. Supõe-se que o povoado de Barra do Furado consistia num aglomerado de casas de sopapo com cobertura de palha, como eram também Ponta Grossa dos Fidalgos, Santo Amaro e Açu. Essa era a paisagem em que se movimentava Ponciano de Azeredo Furtado, personagem principal do romance “O coronel e o lobisomem”, de José Cândido de Carvalho. 
Mapa de Marcelino Ramos da Silva 
com foco na zona costeira de Campos

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