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terça-feira, 19 de setembro de 2017

Os manguezais de Campos

Divulgação
Por Arthur Soffiati

Por determinação de um decreto federal de 1938, Alberto Ribeiro Lamego traçou os limites do município de Campos. Na zona costeira, uma linha reta tangenciando a barra do Açu separava os municípios de Campos e São João da Barra ao norte. 

Na parte sul, ainda não existia o canal das Flechas. A divisa entre Campos e Macaé (pois ainda não existia Quissamã como município) era confusa. Concluída a abertura do canal das Flechas em 1949, a linha divisória ao norte continuou a mesma. Ao sul, ela passou a seguir o novo canal, cortar a lagoa Feia ao meio e tomar o curso do rio Macabu. A divisa entre Campos e São João da Barra tornou-se confusa. Campos não assumiu uma área entre os dois municípios. Aproveitando-se do vazio, São João da Barra a ocupou na prática.

Limites atuais do município de Campos

Examinando a costa de Campos, nota-se que ela é aparentemente imprópria para o desenvolvimento de manguezais. Ela não conta com reentrâncias nem com foz de rios no mar. A energia marinha é muito elevada, não criando condições para o enraizamento de um manguezal. Examinando melhor uma imagem da costa, vai se notar que, nas duas extremidades do município, a barra da lagoa do Açu e a barra do canal da Flecha, conhecida como Barra do Furado. Chegando mais perto, verificaremos condições razoáveis para o desenvolvimento de manguezais.
Zona costeira de Campos, de Barra do Açu a Barra do Furado

É preciso detalhar. Antes do canal da Flecha, existia um complexo de defluentes da lagoa Feia que convergiam para a lagoa do Lagamar e dela formavam um rio conhecido antigamente como Iguaçu. Esse rio passava atrás da crista da praia, em substrato aluvial. Em toda a extensão da costa de Campos, o mar é separado da planície aluvial por um cordão elevado de areia. O rio Iguaçu não encontrava passagem para desembocar nessa elevação arenosa. Ele corria por trás dela na procura de uma saída. Depois do cabo de São Tomé, ele desembocava pela atual barra do Açu, segmento que sobrou do rio.

Fernando José Martins, historiador de São da Barra, escreveu em 1868: “Uma linha natural e notável começou a servir de ponto divisório dos povoados da barra com os dois campos, ao sul da Ponta de S. Tomé; falamos do rio Açu ou Iguaçu (...) este rio sendo ao princípio corrente e livre de obstáculos, apenas encontra-se no presente vestígios nos tempos pluviosos. Foi tão navegável e limpo seu álveo, que morrendo afogado o preto Hilário, da fazenda do Saco dos Cupins, na ocasião em que no Curralinho o ia atravessar a cavalo, ambos os corpos (o cavalo também afogou-se) foram encontrados na barra no fim de 4 dias. Todas as testemunhas que depuseram na justificação dos padres Bentos, quando investigaram a divisão dos dois termos, foram concordes em relatar este fato.”

A planície é tão baixa no terreno em que corria o leito do rio Iguaçu, que a maré cheia avançava nele e chegava ao local onde hoje fica a fazenda de São Miguel, em Quissamã. Talvez atingisse pontos mais distantes. A água salgada do mar misturada à água doce do rio forma o que é conhecido por estuário. Trata-se de um ecossistema distinto daqueles do mar e do rio. A água salobra é ambiente rico em fauna aquática em função da quantidade e qualidade de nutrientes. Na zona intertropical, os estuários são propícios para o desenvolvimento de um ecossistema vegetal que o enriquece mais ainda. É o manguezal. Ele protege a costa dos ventos, reduzindo a erosão marinha; produz alimentos para organismos do rio e do mar; e cria um ambiente propício para a reprodução de espécies animais.

O manguezal do rio Iguaçu não deveria ser diferente. Ele cobria longa extensão e contava com, talvez, a maior diversidade vegetal dos manguezais da região. O que sobrou dele foi o banhado da Boa Vista e a lagoa do Açu, hoje legalmente protegidos pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu. 

No romance “O coronel e o lobisomem”, José Cândido de Carvalho fornece uma informação não encontrada nos trabalhos científicos. Um leitor apenas preocupado com a literatura não terá sua atenção voltada para tão pequena passagem, pois o mundo dos literatos separa-se do mundo natural por uma intransponível barreira. Por sua vez, biólogos, ecólogos e geógrafos não trabalham com a perspectiva temporal nem aceitam a ficção como documento que contenha informação importante. Nem mesmo o historiador atentará para tão insignificante passagem. Parece que só mesmo o eco-historiador perceberá sua importância. E o que escreve o romancista sobre um tempo em que o Iguaçu ainda se apresentava íntegro? O coronel Ponciano de Azeredo Furtado, por recomendação médica, foi tratar de sua saúde tomando banho de mar. Como sua fazenda ficava nas plagas de Santo Amaro, supõe-se que a praia fosse a do Farol de São Thomé.

Escreve ele sobre uma paisagem hoje estranha no Farol. “Andava eu nessas vasculhações de mato quando reparei que do espelho das águas uma renda esgarçada subia, na certa a respiração do brejal. Tratei de ficar em chão seco, que o bafo do mangue podia trazer contaminação malina.” Ele externa a visão que se tinha e ainda se tem do manguezal como ambiente sujo, mal cheiroso, exalando miasmas que provocam doenças. A que manguezal podia ele se referir na retaguarda da crista da praia do Farol senão ao manguezal do rio Iguaçu, não mais existente?

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) alterou profundamente a geografa da baixada. Primeiramente, separou o rio Iguaçu de sua foz como se cortasse a cabeça de uma cobra. Assim, o rio ficou reduzido ao estirão final, hoje conhecido como lagoa do Açu. Os afluentes do rio Iguaçu, que partiam do rio Paraíba do Sul na forma de defluentes, foram todos canalizados e reunidos no canal de São Bento, que nasce no Paraíba do Sul e desemboca no canal da Flecha atualmente. Um desses afluentes do Iguaçu, o último deles, o conhecido rio Doce ou Água Preta foi desviado para o canal da Flecha com o nome de canal do Quitingute e matou mais ainda o Iguaçu.

Se o canal do Quitingute separou a cabeça do corpo da cobra, o canal da Flecha separou sua cauda. Junto à Barra do Furado, existe um manguezal, chamado de Carapeba, que deve ser a parte correspondente ao fim do comprido manguezal do Iguaçu. Talvez ele chegasse a Quissamã, pois, além da comporta do Furadinho, existem ainda plantas de mangue branco que devem sucumbir com o tempo.

Parece que o longo manguezal foi perdendo diversidade de espécies de mangues já quando corria normalmente. Ou a diversidade de espécies exclusivas se reduziu com a mudança de salinidade. O mangue branco resiste mais em água doce. Aliás, o sal não é condição tão necessária ao desenvolvimento de um manguezal. Ele atua mais para eliminar espécies que não toleram salinidade. Significa isso que, com a diminuição da salinidade, a concorrência de espécies associadas e invasoras aumenta. 

Com as obras do DNOS e considerando que o manguezal da Carapeba integrava o comprido manguezal, encontram-se hoje, no manguezal do Açu, as espécies mangue vermelho (Rhizophora mangle), siribeira (Avicennia germinans), mangue branco (Laguncularia racemosa) e mangue de botão (Conocarpus erectus). Esta última espécie não pode ser considerada exclusiva de manguezal, pois medra também na restinga.
Bosque com predominância de mangue de botão, na lagoa do Açu

No manguezal da Carapeba, resta apenas o mangue branco, espécie bastante resistente. Entre a comporta do Furadinho e a fazenda São Miguel, a espécie esparsamente encontrada é também o mangue branco. 
Manguezal monoespecífico da Ilha da Carapeba, em Barra do Furado

Para finalizar, um registro deve ser feito. Ao rasgar o canal da Flecha entre 1942 e 1949, o DNOS criou um rio ligando a lagoa Feia ao mar. Este rio pretendia substituir o rio Iguaçu e abreviar o escoamento de água doce para o mar com mais rapidez. Daí a sua largura e profundidade. Na sua foz, criou-se um estuário problemático, pois a força do mar e dos ventos é grande. Essa força logo veda a foz quando o volume de água doce diminui. Por isso, a construção de dois espigões (guias-correntes) mar adentro. O resultado foi desastroso. Além de não deter o processo de vedação da foz com areia, o espigão na margem direita passou a reter areia do lado de Quissamã. 

Quanto ao lado esquerdo, os espigões provocaram erosão na praia de Campos. Mesmo assim, formou-se um estuário que propiciou o enraizamento de sementes (propágulos) de mangue branco. Hoje, as árvores estão crescidas e formam um bosque do lado de Quissamã.  
Touceira de mangue branco na fazenda de São Miguel, em Quissamã
Bosque novo de mangue branco no canal da Flecha

Leituras

CARVALHO, José Cândido de. O Coronel e o Lobisomem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
MARTINS Fernando José. História do Descobrimento e Povoação da Cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacases, Antiga Capitania da Paraíba do Sul. Rio de Janeiro: Tipografia de Quirino & irmão, 1868.
SOFFIATI, Arthur. Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro (com alguns apontamentos sobre o norte do sul e o sul do norte), 2ª edição. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014.


Por Arthur Soffiati

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