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sábado, 8 de julho de 2017

Os quatro tempos de Barra do Furado


Por Arthur Soffiati

A rigor, barra significa barramento de um curso d’água. Pelo menos, em termos do assunto aqui tratado: ecossistemas hídricos continentais, notadamente rios. No comum, porém, pescadores usam o termo barra para nomear a foz de um rio.

Se retrocedermos cinco mil anos, não existirá a barra do Furado. Nem sequer a planície em que se situa a lagoa Feia. 

Em 1500, ano em que Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, a linha de costa da ecorregião de São Thomé, ou seja, do litoral entre os rios Macaé e Itapemirim, apresentava lineamentos semelhantes ao litoral atual. Claro que a erosão marinha afetou mais certos pontos que outros nos últimos 500 anos. Tomemos os casos de Atafona e Marataízes, por exemplo.

Até 1688, o que conhecemos pelo nome de Barra do Furado não existia. Quando os Sete Capitães empreenderam as três viagens de reconhecimento e posse das sesmarias que reivindicaram no que corresponde hoje ao território entre a lagoa do Açu e o rio Macaé, em 1632, 1633 e 1634, as águas da lagoa Feia defluíam por vários cursos d’água que se reuniam na lagoa do Lagamar e saíam dela com o nome de rio Iguaçu, até chegarem ao mar, no que futuramente denominou-se barra do Canzoza.

Geografia da baixada campista antes do início da colonização europeia:
1- eixo Paraíba do Sul: 2- eixo rio Imbé-lagoa de Cima-rio Ururaí-lagoa Feia-rio Iguaçu
Em 1688, o capitão José de Barcelos Machado, herdeiro colateral dos Sete Capitães, decidiu abreviar a saída de água doce para o mar rasgando uma vala em sua grande propriedade, o morgado de Capivari, ao sul da lagoa Feia. Essa vala recebeu o nome de Furado. Sua foz no mar era temporária porque as ondas e as correntes marinhas são muito intensas no ponto da costa em que a vala desembocava. Os braços defluentes da lagoa Feia apresentavam a direção oeste-leste para sabiamente chegar ao mar em local menos afetado pela energia do mar. Esse local era exatamente a foz do rio Iguaçu, nomeada posteriormente de Canzoza. Atualmente, é conhecida como barra da lagoa do Açu ou simplesmente barra do Açu.

Não só as águas da grande lagoa Feia formavam o rio Iguaçu, mas também vários defluentes do grande rio Paraíba do Sul, que, pela margem direita, corriam através da baixada até encontrar a bacia do Iguaçu. Era tanta água neste pequeno rio difuso que ele não tinha calha para absorvê-la. Naturalmente, ao longo do seu leito, ele formava lagoas e buscava saídas para o mar antes da foz. 

A mais expressiva lagoa abastecida pelo seu curso era o grande banhado da Boa Vista, hoje bastante combalido e protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu. Na lagoa do Lagamar, existia também a barra Velha, como a denominavam os antigos. O ponto, hoje, está de tal forma consolidado que não se imagina a existência de um trecho mais delgado da costa que se abria por pressão da água doce acumulada pelas chuvas. Examinando bem, é possível ver ainda uma pequena vala que faz a comunicação do mar com a lagoa e sobre a qual se construiu uma ponte no estilo Monet. Quando o nível da lagoa sobe, as cabeceiras da ponte ficam submersas. Se a finalidade de uma ponte é evitar que o transeunte entre na água, essa ponte não cumpre seus fins.
Geografia da baixada campista com a abertura da vala do Furado
Concluindo, o primeiro tempo de Barra do Furado foi a abertura da vala com objetivo de escoar mais rapidamente para o mar as águas das cheias.

Durante muito tempo, discutiu-se a necessidade de lançar água doce acumulada na planície ao mar para destinar mais terras à agropecuária. A vala do Furado foi a primeira tentativa. Em 1785, o capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis reconhecia que as águas provenientes das partes mais altas do que então se denominava Distrito dos Campos Goitacás, dentro da Capitania do Rio de Janeiro corriam de norte para sul e de oeste para leste. Ele reconhecia que a bacia do Iguaçu deslizava em ponto mais baixo que o da bacia do Paraíba do Sul. Mesmo assim, ele aprovou um projeto dos jesuítas de que tomou conhecimento.

Segundo informação do cartógrafo da infantaria, os jesuítas pensaram em escoar as águas das cheias na baixada usando como canal o córrego do Cula, um dos defluentes do Paraíba do Sul para o Iguaçu. A população não permitiu que os religiosos abrissem a barragem feita pelos habitantes de Campos na nascente do Cula no Paraíba do Sul, alegando que as águas da planície não corriam para o Paraíba do Sul. Ao contrário, elas vertiam do Paraíba do Sul para a baixada. A população estava certa no seu conhecimento empírico. Os jesuítas e Couto Reis estavam errados.

No século XX, Alberto Ribeiro Lamego defendera ardorosamente as obras de drenagem da baixada pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). 

Segundo ele, o problema não estava em transferir água de uma lagoa para outra e desta para outra lagoa ou para um rio. O problema era o mar. Escrevia ele: “A restinga protege danificando, pois o pequeno desnível das planícies litorâneas para o escoamento das águas é agravado pela muralha de areia que dificulta e mesmo impede a sua saída livre para o mar (...) o problema do saneamento da baixada não depende, para a sua solução, unicamente de drenamento de brejos, rios e córregos obstruídos. Para uma solução permanente há um fator primordial que deve ser considerado. É a luta contra o mar (...) Na região de Campos, qualquer trabalho que venha a ser executado para firmar a entrada das águas no oceano, pela sua própria natureza de fator resistente numa costa rasa e desprotegida, tornar-se-á um ponto de apoio para a formação de novas restingas, que virão se antepor ao trabalho do homem (...) A limpeza dos cursos d’água e o enxaguamento dos brejos melhoram consideravelmente as regiões alagadas, mas toda essa obra gigantesca será sempre provisória, caso o despejo para o Atlântico não seja livre e permanente (...) A luta contra a restinga é a fase final do saneamento. Tecnicamente é a nosso ver a mais difícil (...) De acordo com o próprio mecanismo de formação das fitas de areia, os molhes que virão a ser dispendiosamente construídos, sobretudo nas praias ermas dos litorais do norte isentos de rochas, servirão de pontos de amarração para que novas restingas venham se formando, afastando ao mesmo tempo as correntes litorâneas, que mais ao largo irão depositando outras barragens paralelas nos mares. E, a não ser que uma certa impetuosidade das águas escoadas seja permanentemente mantida na embocadura, os próprios molhes serão incorporados ao continente em pouco tempo, e totalmente soterrados.” Sábias palavras que deveriam ser ouvidas ainda hoje.

O segundo tempo da barra do Furado, que deu nome ao núcleo urbano junto a ela, consiste exatamente em resolver o problema que Lamego levantou em 1940: como escoar água doce para o mar de forma permanente? Havia dois canais naturais que promoviam este escoamento. O principal deles era e continua sendo o rio Paraíba do Sul. O outro era o extinto rio Iguaçu. Periodicamente, a barra da vala do Furado e a barra Velha contribuíam para descarregar água doce no mar. Duas condições, contudo eram necessárias: 1- marés baixas acompanhadas de ondas pequenas e 2- grande volume de água doce acumulado no continente com as chuvas de verão. Cessadas essas duas condições, as barras voltavam a se fechar.

Conforme escreve Hildebrando de Araujo Góes, entre 1898 e 1902, o engenheiro Marcelino Ramos da Silva executou a abertura de um canal ligando a costa atlântica ao ponto mais meridional da lagoa Feia. Antes mesmo que o canal de Jagoroaba ou Ubatuba fosse concluído, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, engenheiro campista já nacional e internacionalmente renomado, vaticinou que a solução encontrada por Marcelino não seria bem sucedida por conta da energia oceânica e por ser ele aberto em terreno arenoso de restinga. Ele seria barrado pelo mar e teria suas margens desmoronadas. Logo depois da conclusão, aconteceu exatamente o que Saturnino de Brito previu. Este mesmo engenheiro propôs, então, que o sistema natural de esgotamento da lagoa Feia fosse otimizado com a limpeza dos vertedouros e a barra da vala do Furado.
Canal de Jagoroaba ou Ubatuba

A segunda tentativa de encontrar um escoadouro estável para o mar fracassou. Na década de 1920, Saturnino de Brito concebeu um ambicioso sistema de drenagem da baixada, inclusive com saídas para o mar. O sistema compreendia uma ligação permanente entre as bacias do Paraíba do Sul e da lagoa Feia através de cinco canais, aproveitando a declividade natural existente entre a primeira e a segunda bacia, o que conduziria a água de uma para outra por gravidade. 

Da lagoa Feia, as águas seriam conduzidas ao mar pelos seus defluentes naturais mantidos sempre limpos e pela retilinização de um deles, o rio Novo do Colégio. Para garantir a barra do Furado permanentemente aberta, ele idealizou um grande canal com 100 metros de largura dividido em 10 outros com 10 metros cada um, devidamente revestidos.

Mas apenas o escoamento das águas pelo rio Paraíba do Sul e pela vala do Furado não seria suficiente para evitar enchentes. Para Saturnino de Brito, era necessária, também, a abertura permanente das barras de Gruçaí, Açu e Lagamar, que voltariam a funcionar como braços auxiliares do rio Paraíba do Sul e da lagoa Feia. Há outros detalhes, como a construção de diques na parte baixa do rio Paraíba do Sul, a dragagem do rio Ururaí e a abertura de um canal pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul começando na altura de Campos e correndo pela margem esquerda até a foz. No final das contas, Saturnino de Brito pretendia restaurar o antigo delta do maior rio da região da maneira mais ampla possível.
Projeto de Saturnino de Brito para drenagem da baixada de Campos
O projeto ficou no papel até ser retomado por Hildebrando de Araujo Góes em seu relatório de 1934. O governo federal havia, então, criado a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, transformada no Departamento Nacional de Obras e Saneamento, em 1940. O projeto de Saturnino de Brito serviu de base ao plano de drenagem do DNOS, embora tenha sido muito modificado. 

Em 1942, começa o terceiro tempo de Barra do Furado com o início da abertura do canal da Flecha, ligando a lagoa Feia diretamente ao mar. A foz da vala do Furado foi alargada. Em 1949, o canal estava concluído. Apenas na década de 1970, o DNOS instalou uma bateria de 14 comportas no trecho final do canal. Seu objetivo era regular o nível da lagoa. Para levar o projeto até o fim. O órgão federal concebeu um canal submerso na lagoa em forma de tridente, ligando a foz do rio Ururaí à nascente do canal da Flecha. A este canal submerso central, outro partindo da foz do rio Macabu o encontraria. Mais outro saindo ainda do canal de Tocos, na lagoa do Jacaré. Para o funcionamento perfeito do sistema, seria preciso remover um vertedouro natural que apareceu no início do canal da Flecha quando da sua escavação, que recebeu o nome de Duro da Valeta. Os pescadores da lagoa não permitiram essa remoção, havendo, então, um conflito memorável entre o órgão federal e os pescadores, entre 1979 e 1981.

Não seria uma grande obra que dominaria o mar. Bem ao contrário, foi o mar que continuou a barrar a foz do grande canal. Para eliminar de vez esse contratempo, o DNOS construiu dois guias-corrente de pedra na foz. Para amainar a energia oceânica, mais dois espigões foram construídos de cada lado. A obra, realizada no início dos anos de 1980, não foi precedida de estudos sobre energia marinha. Ela seria complementada com um entreposto para atender os grandes barcos pesqueiros. No entanto, o discurso oficial para justificar tão ambicioso empreendimento foi atender aos pescadores de água salgada do Farol de São Thomé.

O prolongamento da foz por dois guias-corrente de pedra desalinhou a costa. A praia do lado de Quissamã, à direita, engordou, enquanto que a do lado esquerdo, em Campos, sofreu forte erosão, ameaçando a integridade do já combalido manguezal da ilha da Carapeba. Abandonada a obra, ela passou a ser efetivamente usada por pequenos e médios barcos de pesca do Farol e do próprio canal da Flecha.
Canal da Flecha da nascente, na lagoa Feia, à foz, no mar. Foto: DNOS
Chegou, então, o quarto tempo, em 2009, paralelamente à implantação do Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu. Os municípios de Campos e Quissamã tentaram aproveitar o surto de empreendimentos costeiros no estado do Rio de Janeiro e propuseram a instalação do Complexo Industrial e Logístico Portuário de Barra do Furado, atraindo para a margem direita do canal da Flecha um estaleiro da sul-coreana STX e para a margem esquerda uma base de apoio off-shore da norte americana Chouest. As prefeituras dos dois municípios se incumbiriam da infraestrutura necessária para as empresas interessadas. As obras começaram, sempre usando o argumento da geração de empregos, aumento de renda e tributos para os municípios.

A costa norte do Rio de Janeiro e sul do Espírito Santo, dentro da Ecorregião de São Thomé, foi varrida por empreendimentos portuários: porto em Presidente Kennedy (sul do Espírito Santo), porto de Canaã, em São Francisco de Itabapoana, porto do Açu, em São João da Barra, complexo naval entre Campos e Quissamã, e porto de apoio à Petrobrás, em Macaé. Mais recentemente, anunciou-se um mega porto em Carapebus, com acesso por cima do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba.

A maioria dos empreendimentos não chegou a ser implementada. O porto Canaã não saiu do papel. O complexo portuário do Açu mudou de mãos e abdicou provisoriamente de grande parte do megalomaníaco projeto. O de Barra do Furado foi a pique com a ida da Chouest para o Açu e da desistência da STX. O de Macaé também não saiu do projeto.

No caso do canal das Flechas entre a foz e a bateria de comportas, as obras foram abandonadas. Houve previsão de medidas compensatórias para pescadores tradicionais, como a construção de um quebra-mar na entrada do canal para mitigar a força do mar e permitir a navegação de barcos de pequeno e médio portes.  

Já que o empreendimento não foi adiante, minha opinião sobre o baixo curso do canal das Flechas é a mesma do sociólogo José Luis Vianna da Cruz, coordenador geral da equipe que formulou o “Estudo de impacto socioeconômico do Complexo Industrial e Logístico de Barra do Furado”: concluir as obras necessárias para os pescadores. Eles próprios propuseram a construção de um quebra-mar que facilite a entrada e a saída de barcos no canal. Mas é preciso efetuar estudos de impacto ambiental para esta obra, pois ela pode criar mais problemas para a praia de Campos e para a foz do canal. 

Imprescindível é também construir um sistema que permita a passagem da areia acumulada na margem direita para a margem esquerda de modo a alinhar novamente a costa. Uma Unidade de Conservação deve ser instituída pelo governo de Campos para proteger o manguezal da Carapeba, como determina o Plano Diretor ainda vigente, enquanto Quissamã deve proteger o pequeno manguezal que se desenvolveu na margem direita do canal.
Esquema do complexo para Barra do Furado,
segundo Relatório do estudo de impacto socioeconômico do CBF-
Complexo Industrial e Logístico de Barra do Furado
Quissamã/RJ. Campos dos Goytacazes/RJ
Outras medidas devem ser tomadas. Se, de fato, as duas prefeituras se interessassem pela atividade pesqueira, ambas se empenhariam em formular um projeto mais barato que aquele que malogrou. Mas não há interesse. Os pobres sempre vivem da rebarba dos ricos. Como esses abandonaram Barra do Furado, as prefeituras também a abandonarão.


Arthur Soffiati

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