Por Arthur Soffiati
Sou carioca e, em 1970, vim passar um ano com meus pais em Campos. Eu estava cansado de morar sozinho no Rio de Janeiro, tendo de trabalhar e de estudar. Minha intenção era retornar ao Rio depois do descanso, mas passei no vestibular de história da Faculdade de Filosofia de Campos e fui ficando. Casei, tive filhos, consegui vários empregos como professor. Nunca fiquei tanto tempo num só lugar. Creio que agora já sou campista e morrerei por aqui mesmo.
Passei dez anos em Campos sem saber onde pisava. Eu não percebia que tinha uma planície sob os pés. No máximo, eu conhecia o rio Paraíba do Sul. A partir de 1978, comecei a conhecer melhor a região norte/noroeste fluminense por integrar o Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza, que lutava pela proteção do meio ambiente. Senti necessidade de estudar a região para que minhas ações tivessem consistência.
Passei 38 anos da minha vida conhecendo a lagoa do Açu apenas em sua barra. Em 2018, eu já sabia que ela era o trecho de restinga do rio Iguaçu, que nascia na lagoa Feia pela reunião de muitos canais naturais extravasores, cortava uma parte da planície argilosa e desembocava no mar pela Barra do Canzoza, nome que já se esqueceu. Antes de se lançar no mar, o rio ainda recebia águas do antigo rio Veiga pela margem esquerda.
Antigo rio Iguaçu com suas três saídas para o mar. Mapa de Bellegarde e Niemeyer-1865
Mas o rio foi cortado pelo canal da Flecha, aberto pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento na década de 1940. Imaginem uma cobra da qual se retira a parte central do corpo. Assim ficou o rio Iguaçu. A parte inicial se estende da lagoa Feia ao canal da Flecha, onde a comporta do Furadinho impede que a água do mar penetre. Esse trecho inicial dele recebe o nome de rio do Espinho. Os informados ainda sabem que ele tinha o nome de Iguaçu.
A parte final é conhecida hoje com o nome de lagoa do Açu. Assim como as lagoas de Gruçaí e de Iquipari, a lagoa do Açu é alongada. Se as duas primeiras não eram rios, a lagoa do Açu era. Daí seu alongamento da foz ao grande banhado da Boa Vista. Antes que os europeus chegassem à baixada goitacá, as águas que transbordavam pela margem direita do Paraíba do Sul em tempos de chuva corriam para a bacia do rio Iguaçu e ele ficava muito caudaloso. Mas, no tempo de estiagem, sua foz devia ser fechada, conforme informação que colhi de um relatório datado de 1785.
Em 2018, eu já conhecia muitos segredos do rio Iguaçu, mas nunca tinha navegado suas águas. Em fevereiro de 2018, apareceu-me a oportunidade de conhecer a cauda do antigo rio, que começa na lagoa Feia e termina no canal da Flecha. Começamos a navegação no ponto em que o antigo rio permite o deslocamento de uma lancha a motor, na qual um grupo de interessados estava embarcado, eu entre eles.
Ponto inicial para navegação no rio Iguaçu no trecho lagoa Feia-canal da Flecha
Foi um passeio deslumbrante. Esse trecho inicial do rio corre em terreno sedimentar. Da vegetação original, ainda restaram alguns remanescentes, sobretudo plantas aquáticas. Em determinado ponto, acontece com o rio o mesmo que acontece com o Paraíba do Sul: ele verte pela margem direita e alaga toda uma baixada. Em certo ponto, ela foi ligeiramente elevada para que fosse erguida a capelinha de São Miguel. Supõe-se que, nas proximidades desse local, foi erguido, em 1634, o oratório em louvor a São Miguel pelos Sete Capitães, pioneiros da colonização contínua da região pelos portugueses.
Tubulação que permite o rio Iguaçu formar um banhado na margem direita onde cresce o manguezal de São Miguel
Nesse trecho do rio, a água é doce, mas no banhado à margem direita ela se torna salobra, muito provavelmente devido à infiltração de água salgada do mar. Ao lado da capela, cresceu um pequeno bosque de manguezal que desafia as tentativas de decifração. As águas do banhado defluem por um estreito canal comprido, hoje bastante seccionado.
Capela de São Miguel
Seguimos adiante. No trecho final desse segmento do rio, ergue-se a vila de Barra do Furado. Sem tratamento devido, as águas de esgoto são lançadas no rio Iguaçu e não fluem para o mar porque a comporta do Furadinho não permite. Ela só é aberta quando a água doce se acumula muito no rio. Então, entende-se necessário que a comporta seja aberta para que a água corra para o mar. Sem essa pressão da água doce, a abertura da comporta permite a entrada de água salgada, que saliniza mais ainda o solo. Assim, o manguezal de São Miguel não sofre a influência benfazeja das marés.
Comporta do Furadinho
A continuação do rio Iguaçu na margem esquerda do canal da Flecha chega à lagoa do Lagamar, onde ficava a Barra Velha. O canal do Quitingute, aberto pelo DNOS, aproveitou-se de parte do rio. Esse é o trecho fluvial corresponde à parte central do corpo da cobra. Ele foi esquartejado por barramentos de acesso a pedestres e veículos. A malha urbana do Farol de São Tomé se expande rapidamente na direção desse trecho cortado em rodelas. Ele se estende até o banhado da Boa Vista, na margem esquerda da estrada Campos-Farol, no sentido de quem vem de Campos.
Visão aérea do rio Iguaçu entre o canal da Flecha e o banhado da Boa Vista
Do Banhado da Boa Vista à barra do Açu, estende-se o curso final do antigo rio Iguaçu. No banhado, a vegetação ainda é característica de água doce. Existem marcos jesuíticos cravados no fundo do banhado e com a extremidade superior emersa.
Marco jesuíta fincado no banhado da Boa Vista
A navegação passa a ser deslumbrante. Plantas de mangue começam a aparecer. O mangue branco domina a lagoa até a ponte Maria Rosa, sinal de que havia ligação permanente da lagoa com o mar no passado. Ao menos uma ligação de periodicidade muito regular. Logo depois da ponte, da margem esquerda da lagoa, parte um canal aberto por mão humana até a lagoa Salgada. Esse canal foi colonizado por mangue branco. Seguindo em frente, encontramos cenas de tirar o fôlego. Bandos de aves de diversas espécies frequentam a lagoa. Fiquei maravilhado com uma revoada de guarás. Ninguém pode roubar a beleza desse lugar. Nenhum empreendimento, por mais lucrativo que seja e com amplo interesse social, pode macular esse pedaço de paraíso.
Guarás na lagoa do Açu
Próximo à barra da lagoa, começam a aparecer casas evidenciando outro perigo: a expansão da vila do Açu em direção à lagoa. Um lindo bosque de mangue vermelho acachapado, revelando estresse das plantas, orna o lado esquerdo. Havia aí dois pés de siribeira. Ao que tudo indica, foram cortados. Essa espécie está pouco representada na lagoa. Um belo exemplar está ativo, florescendo e produzindo sementes (propágulos). Na barra, encontra-se talvez o maior bosque de mangue-de-botão do Estado do Rio de Janeiro.
Bosque de mangue-de-botão na lagoa do Açu
Legalmente, o trecho entre o banhado e a barra está protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu (PELAG). Mas sua efetivação na condição de Parque enfrenta dois problemas principais: a questão fundiária e a atividade pesqueira. A questão fundiária geralmente é o problema mais difícil de ser resolvido em qualquer Unidade de Conservação. Faltam recursos financeiros para indenizar bens particulares dentro do Parque. Existem também resistências. Quanto à pesca, ela está oficialmente autorizada aos pescadores que já a praticavam antes da criação do Parque. Essa autorização vale até a morte dos pescadores, sendo vedada a novos, mesmo que herdeiros dos antigos. A pesca traz um problema para o parque: a abertura da barra da lagoa para a entrada de peixes em certas épocas do ano. Já se propôs, inclusive, um acesso para os peixes pela retaguarda da lagoa.
Enfim, a atividade turística pode ser rentável aos pescadores, que trabalhariam como guias e condutores. Mas é preciso cuidado. O turismo não pode ser predatório, como ainda é muito comum no Brasil. O Gênesis não pode se transformar num Apocalipse. Para uma proteção total, a parte inicial do rio deveria também ser protegida por alguma figura legal com apoio dos moradores locais. Proteger os dois segmentos do antigo rio Iguaçu está em consonância com os novos tempos.
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