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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Dragagem e limpeza de canais de baixadas

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Por Arthur Soffiati

Desde o século XVII, quando os Sete Capitães iniciaram o processo de colonização europeia contínua da região com o gado e logo depois com a cana, a conversão da grande área úmida que era a planície fluviomarinha em área seca começou. O marco simbólico dessa conversão foi a abertura da vala do Furado pelo Capitão José de Barcelos Machado, em 1688.

O mais esclarecedor documento sobre o Distrito dos Campos Goitacás, que futuramente corresponderá às regiões norte e noroeste fluminense é o relatório do capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis, de 1785. Ele escreve: “No tempo das grandes chuvas e com o concurso das muitas águas que naturalmente descem das muitas serras, se inundam todos estes rios, córregos e regatos, como também as lagoas, e logo saem fora do seu álveo, aquelas demasiadas sobras vão ocupar as baixadas dos campos, os vales, os brejos e muitas vezes as estradas, – já sucedeu em algumas navegar-se – e não restando mais para serem alagadas que algumas eminências diminutas, para onde se faz retirar o gado por não se afogar; então experimentam danos nas lavouras e tudo é perda irremediável (...) E por que estas águas não têm esgoto ou expedição natural, ensina a boa razão que se lhe faça uma barra naquela parte mais conveniente, para o que concorrem as quatro fazendas grandes. São as que foram dos Jesuítas, a dos Beneditinos, a dos Excelentíssimos Viscondes e a do Morgado de Capivari, em razão de livrarem das inundações os seus gados e lavouras”.

Depois de descrever os grandes rios e lagoas da baixada, ele se detém nos córregos e brejos ao sul e a leste da lagoa Feia, que formavam um aranhol de difícil compreensão. 

Ele registra os nomes desses pequenos cursos d’água que formavam o emaranhado hoje extinto, mas ainda pulsando sob o sistema de dragagem e drenagem construído no século XX pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS): córregos da Castanheta, do Rodrigo, Ingá, Barro Vermelho, das Bananeiras, Iguaçu, dos Canudos, da Onça, do Marcelo, do Pai Tomás, dos Tambores, de Filipe Correia ou da Condena, da Contenda, do Coqueiro (que se dividia nos córregos do Pensamento e da Mãe Teresa), Grande (atravessava a Estrada Geral três vezes; essa estrada corresponde hoje a Campos-Farol), da Passagem de Santo Amaro (oriundo do Mulaco), da Capivara, dos Pauzinhos, do Tucum, do Veiga, Doce, Fundo, do Colégio, Calundu, do Mulaco. E completava: “Todos estes e outros muitos oferecem admiráveis pastos em tempo seco, porém, com as grandes chuvas se alteram de modo que em canoas se navegam desembaraçadamente, passando-se de uns para outros mais vizinhos.”

Nos períodos de estiagem, o volume de água doce desse grande banhado permitia a proliferação de plantas aquáticas, sobretudo o aguapé e o bofe. Os rios provenientes da zona serrana e ainda em terreno declivoso promoviam a própria limpeza com as fortes correntes:  “... os rios que descem das serras e outros lugares eminentes, por correrem sobre planos inclinados ou oblíquos, como é natural com mais velocidade, não dão lugar a que se conservem paradas aquelas imundices (aguapé e bofe), antes pela violência despegam as que se vão criando em suas margens.” “... um mesmo rio vindo das serras e chegando ao ponto da sua confluência com qualquer outro ou lagoa, porque perde já muita parte da velocidade que fazia por represadas as suas águas, ali se criam as referidas ervas como vemos no Imbé, no Macabu e outros.”

Na baixada era necessário proceder à limpeza dos cursos d’água por meio mecânico. Naquele distante tempo, não havia Secretaria de Ambiente em nenhuma instância da colônia. Muito menos, existia esse monstro da baixada conhecido com o nome de draga. A limpeza tinha de ser manual, com o uso de ferramentas. E quem se incumbia desse trabalho normalmente anual? A ordem dos Jesuítas. Os próprios religiosos metiam a mão na água para a retirada de plantas? Claro que não. Eram seus escravos que praticavam esse trabalho braçal.

Couto Reis não gostava muito dos Jesuítas, mas reconhecia a importância da ordem religiosa na prestação de serviços públicos a bem dizer gratuitos: “... os Jesuítas com gênio e economia inimitável tinham a cautela de darem de tempos em tempos uma limpeza total nos córregos e rios desta qualidade, e por isso então ofereciam desembaraçada navegação e passagem fáceis de vadear-se.” E acrescenta o cartógrafo: “O modo de se fazer esta limpeza é facílimo; embarcam-se os trabalhadores em canoas, e entrando pelos córregos ou rios embaraçados, com uma ou mais roçadoras vão cortando em diferentes partes os aguapés. Que com a força ou pés das águas se desligam e caminham com a correnteza até saírem pela barra (do Furado), que já neste tempo deve estar aberta.”
Vala do Furado com seus meandros antes da abertura do Canal da Flecha (aberto entre 1942 e 1949). Foto DNOS

Em todas as planícies do Rio de Janeiro, os jesuítas tinham terras e nelas construíam sedes. Eram imponentes seminários que promoviam a educação de índios principalmente e a prestação de serviços públicos. Os mais famosos eram o de Santa Cruz, na baixada de Sepetiba; os colégios do morro do Castelo, de São Cristóvão, do Engenho Velho e do Engenho Novo, na baixada da Guanabara; Campos Novos, na Região dos Lagos; Santa Ana de Macaé e fazenda do Colégio, nas baixadas macaense e campista.
 Carta da costa do Brasil levantada por Diogo Soares e Domingos Capacy assinalando as fazendas jesuítas no Rio de Janeiro

Os escravos, sob o comando dos padres, trabalhavam para todos na livre circulação das águas dos cursos hídricos em tempos de cheias. Supõe-se mesmo que eles tenham aberto novos canais, como o rio Novo do Colégio, cujo nome é sintomático. O trabalho de limpeza era periódico porque as plantas aquáticas cresciam nas estiagens pela pouca espessura das lâminas d’água e pela forte insolação. Tratava-se de uma operação periódica e não emergencial, salvo em casos raros (parece que sempre casos de cheias extraordinárias, não de estiagens). Mas Couto Reis escreve sobre os jesuítas apenas por informação. 

Quando ele foi designado para levantar o mapa das futuras regiões norte e noroeste fluminense, em 1783, os jesuítas não estavam mais no Brasil. Eles foram expulsos de todo o império colonial português pelo Marquês de Pombal em 1759. Um dos últimos trabalhos do capitão-cartógrafo foi administrar a fazenda Santa Cruz, que também pertencera aos jesuítas, na baixada de Sepetiba. Ela agora pertencia à coroa portuguesa. Lá, Couto Reis ficou fascinado com a rede de drenagem que os padres construíram e a recuperou. 

Sem os jesuítas e seus escravos, as planícies ficaram abandonadas. Elas voltavam à condição de áreas superúmidas, mais apropriadas para a pesca. Representante do pensamento ilustrado, Couto Reis entendia que elas não podiam ser abandonadas pela agropecuária. No caso da baixada campista, ele sugeriu primeiro que as câmaras municipais exigissem dos proprietários que eles fizessem com seus escravos o trabalho que os jesuítas outrora empreendiam. Mas ele notou que, no seu individualismo (um dos três traços fortes do perfil capitalista, ao lado do imediatismo e do consumismo), os proprietários, quando muito, limpavam apenas os estirões de cursos d’água que banhavam suas terras.

Então, Couto Reis insistiu que as câmaras municipais avocassem essa tarefa. Tudo inútil. A limpeza dos canais naturais deixou de ser periódica e passou a ser emergencial. 
Defluentes da Lagoa Feia antes da abertura do Canal da Flecha. A antiga barra da vala do Furado está assinalada em vermelho. Notar como a água doce ficava aprisionada na baixada. Foto DNOS, 1937

Por informação de Júlio Feydit, o príncipe regente D. João ordenou que José Carneiro da Silva se encarregasse da limpeza e conservação dos afluentes da lagoa Feia e de seus defluentes. Parece que a tarefa foi cumprida à risca em 1811. 

Baseado em notícia publicada na “Gazeta” de 3 de setembro de 1817, Pizarro e Araujo também nos fala de trabalhos visando a limpeza dos cinco braços defluentes da lagoa Feia por iniciativa de Paulo Fernandes Viana, então Intendente Geral de Polícia, desde 1812, trazendo como resultado a redução das áreas alagadas, o aumento de terras para a lavoura e para o gado, a melhoria das estradas e o desaparecimento de doenças epidêmicas. E tudo sem dispêndio de dinheiro público.

Até o advento da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, criada pelo governo federal em 1933, a dragagem e conservação dos cursos d’água e lagoas foram eventuais, vale dizer, emergenciais. A partir de 1935, com o início dos trabalhos da Comissão e, depois de 1940, pelo DNOS, nome que ela ganhou, não apenas os rios antigos foram limpos, mas substituídos por canais geométricos. Nas duas margens do rio Paraíba do Sul e nas demais baixadas fluminenses, superpôs-se uma geometria euclidiana a uma geometria fractal.

O resultado foi o dessecamento da região. Com a destruição das lagoas e canalização dos cursos naturais, a água doce foi lançada ao mar. As águas das chuvas não eram mais retidas como antes no continente. Rapidamente corriam para o mar pelo rio Paraíba do Sul e pelos canais da Flecha e Engenheiro Antonio Resende. Paralela e progressivamente, as florestas das bacias do Paraíba do Sul e do Imbé foram removidas, aumentando a erosão e o assoreamento. Aos poucos, também, foi aumentando a poluição em todas as suas formas. 

O processo de empobrecimento das baixadas do Estado do Rio de Janeiro, do Brasil e de outros países, bem como da natureza nativa (aquela que se cria por conta própria), não é recente, embora tenha se acelerado vertiginosamente a partir do século XX. Também não é resultado da ação de pessoas más. Ele é fruto de um sistema econômico que começou a se estruturar no século XI, na Europa Ocidental. A partir do século XV, ele começou a se expandir pelo mundo. É o que conhecemos como globalização. O sistema econômico de mercado produz pessoas individualistas, imediatistas e consumistas. O problema não está nas pessoas más, e sim nas pessoas que foram forjadas dentro da economia de mercado. Todos nós contribuímos para a destruição da natureza. Ela é, para nós, um estoque de recursos e uma lata de lixo.

A partir da década de 1970, algumas pessoas começaram a perceber que a humanidade modelada pelo sistema mercantil está em rota de colisão com o planeta. Uma nova cultura começou a emergir. Ela é ainda muito fraca. Temos pela frente três opções claras: 1- a incorporação da nova cultura pelo capitalismo, transformando-a em mercadoria, como aconteceu com a contracultura da década de 1960. Seria o surrado desenvolvimento sustentável. 2- a falência do capitalismo e a emergência de uma nova cultura, de uma nova economia (algo que parece remoto); e 3- a falência geral do mundo que conhecemos. A humanidade dispõe do século XXI para mudar e sobreviver ou continuar na mesma rota e sucumbir. É o século da mudança ou da falência.

Voltando ao norte/noroeste fluminense e ao Rio de Janeiro, os equilíbrios naturais vêm sendo rompidos desde o século XVI. No que toca às baixadas, elas foram muito alteradas. Provisoriamente, não abordaremos as mudanças climáticas. Consideremos que as chuvas continuam com o padrão dos últimos 500 anos. Se é assim, por que, atualmente, as secas e as enchentes são mais severas que no passado? Se temos dúvidas quanto à irregularidade crescente do regime pluviométrico, não temos dúvidas sobre a destruição dos equilíbrios naturais. Os mecanismos de retenção de água no continente foram destruídos. Assim, se chove mais do que a média, ocorrem inundações. Se chove normalmente ou abaixo da média, ocorrem secas. O agronegócio e a urbanização concorrem muito para as secas. Ambos exigem água demais. Ela fica retida em plantas, gado e pessoas ou volta para a natureza apresentando qualidade bem inferior do que aquela captada.

E nós vivemos de ações emergenciais. A redução progressiva da água doce nas planícies costeiras está permitindo que a água salgada retida pela formação geológica delas (água conata) alcance a superfície. Está permitindo também que o mar avance pela superfície dos continentes ou pelo lençol freático. Medidas emergenciais são para conseguir água doce nas secas. Medidas emergenciais são também tomadas para jogar água doce no mar nas enchentes. A dragagem atual, que começou no canal Caxexa, pelo que li, pretende liberar água doce da lagoa Feia, que, segundo a notícia, está 30 cm. acima do nível normal, para fazer frente à língua salina. Não há nenhuma medida para a reconstrução estrutural, ainda que pequena, para a reversão de tendências. Continuamos em direção da destruição.
Defluentes da lagoa Feia antes da abertura do canal da Flecha. O canal Caxexa, hoje alterado pelas obras do DNOS, está assinalado em vermelho. Mapa de Alberto Ribeiro Lamego

Leituras adicionais

COUTO REIS, Manoel Martins do. “Memórias de Santa Cruz. Seu estabelecimento e economia primitiva: seus sucessos mais notáveis, continuados no tempo da extinção dos denominados Jesuítas, seus fundadores, até o ano de 1804”. Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo quinto, 3ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886.

COUTO REIS, Manoel Martins do. Descrição Geográfica, Política e Cronográfica do Distrito dos Campos Goaitacás, que por ordem do Ilmo e Exmo Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General do Mar e Terra do Estado do Brasil, etc. se escreveu para servir de explicação ao Mapa Topográfico do mesmo Terreno, que debaixo da dita ordem se levantou. Rio de Janeiro: 1785.

FEYDIT, Julio. Subsídios para a História dos Campos dos Goytacases, 2ª edição. Rio de Janeiro: Esquilo, 1979.

GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas) e GOMES, Marcelo Abreu. Roteiro dos Sete Capitães. Macaé: Funemac Livros, 2012.

GÓES, Hildebrando de Araujo. Saneamento da baixada fluminense. Rio de Janeiro: s/e, 1934.

INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE. Projeto de recuperação da infraestrutura hídrica da Baixada Campista e Norte Fluminense – PAC II. Rio de Janeiro: INEA, 2011.

PIZARRO E ARAUJO. José de Souza Azevedo, Memórias Históricas do Rio de Janeiro, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

Por Arthur Soffiati / Fotos: Autor

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